O
princípio da boa administração previsto no art. 5º do novo CPA
[Decreto-Lei nº 4/2015, de 7/1] é um princípio geral que decorre
da alteração legal que aprovou o actual Código de Procedimento
Administrativo. Este princípio encontrava-se parcialmente previsto
no art.10º do CPA de 1991, conforme decorre das transcrições
abaixo:
Artigo
10.º CPA (1991)
Princípio
da desburocratização e da eficiência
A
Administração Pública deve ser estruturada de modo a aproximar os
serviços das populações e de forma não burocratizada, a fim de
assegurar a celeridade, a economia e a eficiência das suas decisões.
Artigo
5.º CPA (2015)
Princípio
da Boa Administração
1-
A Administração Pública deve pautar-se por critérios de
eficiência, economicidade e celeridade.
2-
Para efeitos do disposto no número anterior, a Administração
Pública deve ser organizada de modo a aproximar os serviços das
populações e de forma não burocratizada.
Numa
primeira comparação entre estes dois artigos verificamos que, no
art.10º do antigo CPA, o enfoque recaí na estruturação da
Administração. A forma organizatória e procedimental da
Administração estava visada nesta norma para, reflexamente,
garantir as dimensões da celeridade, economicidade e de eficiência
nas suas decisões. Isto é, partia-se do pressuposto que com uma
Administração próxima das populações e desburocratizada estavam
tuteladas as qualidades da celeridade, economicidade e eficiência
nas correspondentes decisões.
O
novo CPA, vem dar primazia aos critérios de eficiência,
economicidade e celeridade, num comando geral de sujeição de toda a
atividade administrativa, e só depois afirma que a Administração é
organizada de modo a potenciar esses fins. O que, anteriormente, se
situava no âmbito do mérito ou da discricionariedade da decisão
encontra-se, agora, no plano da legalidade e, consequentemente, do
controlo judicial.
Actualmente,
a consagração deste princípio encontra-se longe de ser consensual,
e partindo da sugestão do professor Miguel Raimundo, irei analisar a
discussão em redor deste princípio em 3 pontos:
- Da ligação com o Direito Europeu
Esta
questão prende-se com a integração do princípio do Direito a uma
Boa Administração, positivado no art.41º da Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia (CDFUE) como critério de eficiência
do sistema jurídico europeu no ordenamento jurídico português.
Artigo
41º da CDFUE
1. Todas
as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas
instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial,
equitativa e num prazo razoável.
2. Este
direito compreende, nomeadamente:
a)
|
O
direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito
ser tomada qualquer medida individual que a afete
desfavoravelmente;
|
b)
|
O
direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe
refiram, no respeito pelos legítimos interesses da
confidencialidade e do segredo profissional e comercial;
|
c)
|
A
obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas
decisões.
|
3. Todas
as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos
danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no
exercício das respetivas funções, de acordo com os princípios
gerais comuns às legislações dos Estados-Membros.
4. Todas
as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da
União numa das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na
mesma língua.
Da
apreciação e concatenação dos dois regimes (europeu e nacional)
podemos concluir que o princípio da boa administração, no sentido
europeu, está assente na ideia de juridicidade e contem poucas
semelhanças, com o art.5º do CPA, não obstante a «concepção
teleológica da norma» – boa administração – e um conjunto de
exigências bastantes heterogéneas.
Em
dissonância a CDFUE apresenta componentes da boa administração no
nível procedimental como a imparcialidade, a justiça, o acesso à
informação, o dever de fundamentação e a responsabilidade da
administração por danos, que por sua vez, já se encontram
constitucionalmente ou legalmente previstos no nosso ordenamento
jurídico. Verifica-se também a falta de referência aos critérios
da eficiência, economicidade e eficácia, exceptua-se o critério da
celeridade previsto nº 1, parte final, do art. 41º CDFUE.
Existe,
todavia, segundo alguma doutrina, uma explicação para a
discrepância entre o conceito europeu e o conceito nacional de boa
administração que está relacionado com as reservas em consagrar na
União Europeia, um tipo de escrutínio semelhante àquele a que a
Administração é sujeita em vários ordenamentos europeus, nos
quais se insere o português: '' a ideia do escrutínio
relacionado com a eficiência nasce, em primeira linha, da percepção
do cidadão como cliente e pagador da actividade pública. A boa
administração como eficiência cumpre assim um papel de tentar
conferir maior legitimidade à administração através da sua
reputação de boa e diligente gestora dos recursos públicos. Ou,
como tem sido defendido por uma corrente recente da doutrina
norte-americana – que no entanto se funda em raízes bem antigas –
a administração está colocada numa posição fiduciária face aos
particulares, que lhe entregam os seus recursos para gerir, e nessa
medida, tem de estar preparada para esclarecer os ''comitentes''
sobre o que faz com esses recursos e para suportar consequências se
o resultado não for adequado.''[1]
Desta
forma, o postulado que a exigência da administração provém da
reivindicação feita por parte dos interessados formula uma
explicação possível para o carácter problemático ao nível do
Direito Europeu. Pois, no atual quadro de relações entre a
Administração da União Europeia e os cidadãos europeus é
evidente a falta de um sentimento de pertença suficientemente forte,
'' quer porque não existem mecanismos de controlo de situações
de falta de eficiência das instituições europeias, quer porque os
momentos de interacção direta entre os serviços da Comissão
Europeia e os cidadãos são relativamente poucos (…) ''[2]
; ao que acresce o facto do funcionamento da União
Europeia privilegiar o relacionamento com os Estados-Membros e não
com os cidadãos em concreto.
Assim, o conceito europeu de boa administração afigura-se como
conceito natural de Administração distante dos cidadãos europeus e
vago quando comparado com o princípio do art.5º CPA, nomeadamente
na fase de controlo de legalidade da actuação administrativa no
direito nacional.
- Da autonomia da boa administração como eficiência face a outros princípios
Nesta
questão é abordada a boa administração como princípio da
eficiência, e tem-se em vista a análise da respetiva autonomia
face a outros princípios como o da proporcionalidade. Num
entendimento imediato é notória a existência de uma proximidade
entre o princípio da proporcionalidade e o princípio da eficiência
dado que, ambos têm em conta a adequação de meios utilizados para
o alcance do respetivo fim.
No
campo das diferenças, a proporcionalidade pressupõe a sujeição de
um sacrifício a um particular enquanto na eficiência esse
pressuposto não é obrigatório, apesar de existirem situações em
que a eficiência mede, e assume a função destinada à
proporcionalidade, de limitar o sacrifício ao qual o particular é
sujeito. A eficiência está ainda associada à criação de
repercussões que tendencialmente se restringem ao sector público,
com especial incidência na prossecução do interesse comum pelas
vias contratual ou através da colaboração com os particulares.
Não
obstante, são também identificáveis zonas de sobreposição do
conceito de proporcionalidade perante o controlo de eficiência, que
fazem com que o parâmetro se reconduza a um conceito amplo de
proporcionalidade. Porém, a ideia não é prejudicial à vigência
dos dois princípios nem reconduz a autonomização do princípio da
boa administração a uma inutilidade ou redundância. Pois relembra
ou indica aos funcionários da Administração o carácter específico
e a cautela necessária na execução das suas incumbências. A
distinção também é bastante útil sob o ponto vista dos
mecanismos de controlo interno e externo da actividade
administrativa: '' se se quiser colocar uma entidade (como uma
inspecção geral, ou o Tribunal de Contas) a controlar a
razoabilidade da afectação dos fundos públicos, por se entender
que essa entidade tem especiais qualificações para esse tipo de
controlo, o apelo ao respeito pelo princípio da eficiência como o
padrão para essa actividade de controlo recorta de uma forma exacta
esse âmbito. Manifestamente, não se conseguiria um recorte adequado
à especialização daquelas entidades se se dissesse que elas iriam
controlar o cumprimento, pelo órgãos administrativos, dos
princípios da proporcionalidade, ou da justiça''.[3]
- Dos limites da boa administração como eficiência enquanto parâmetro de controlo da actividade administrativa
Esta
questão envolve o
funcionamento do princípio da boa administração como parâmetro de
controlo de actividade administrativa, sobretudo, de controlo
jurisdicional. Coloca-se a questão de determinação dos limites da
actuação da função jurisdicional no exercício do controlo
administrativo de forma a que não ocorra nenhuma problema de invasão
da esfera de mérito da administração.
A
maioria da doutrina defende que a administração está sujeita a um
dever de natureza jurídica de boa administração que a vincula a
encontrar sempre a melhor opção para o interesse público; porém,
este é considerado um dever jurídico imperfeito, dado que, à
violação deste dever não se encontra associada nenhuma sanção
jurídica.
Porém,
a doutrina portuguesa é bastante abundante em consequências
jurídicas resultantes da violação do dever de boa administração
tal como a responsabilidade disciplinar de funcionários ou
dirigentes como resultado de uma actuação ineficiente ou como a
responsabilidade civil da administração perante um terceiro. A
eficiência pode fundamentar acções de impugnação ou outras
acções de ''orientação
e controlo dentro da estrutura administrativa, no contexto dos
poderes de controlo atribuídos aos órgãos (sobretudo, ao Governo)
titulares dos poderes de direção, superintendência e tutela (no
caso de existir tutela de mérito) sobre outros órgãos.''[4]
Outro
aspecto defendido pela grande maioria da doutrina é o facto de os
tribunais não poderem invalidar atos administrativos com
fundamentação na falta de eficiência, nem conceder tutela
preventiva contra actos potencialmente contrários ou
insuficientemente económicos. Visto que nestes casos a função
jurisdicional estaria a intrometer-se na esfera de mérito da
administração.
Ora,
parece pouco justificado que a aplicação jurisdicional do princípio
da boa administração se traduza numa usurpação de poderes.
Veja-se o seguinte exemplo: o ''Tribunal
Constitucional, para cumprir a sua missão, tem de se meter na
política, porque o objeto do controlo do Tribunal, que é a lei, é
um resultado da actividade política e é desta inseparável; mas
meter-se na política não é o mesma coisa que fazer política.''[5].
Seguindo a mesma linha de pensamento, os tribunais que controlam a
actividade da administração têm «de se meter na administração»,
todavia têm de fazê-lo sem nunca exercer a função administrativa.
O controlo jurisdicional efetivo não é sinónimo de dupla
administração nem de substituição da administração, mas é uma
exigência de um Estado de Direito (art. 20º CRP) sobre a
administração pública ainda que essa tutela recaía sobre o
controlo de mérito, por a administração continuar em todo e
sempre, sujeita ao princípio da legalidade.
Conclusão
A
inclusão do novo princípio da boa administração no novo CPA,
melhora significativamente o antigo princípio da desburocratização
e eficiência com inserção de critérios legais que favorecem a
prossecução do interesse público. Porém, não deve fugir ao
controlo da função jurisdicional, apesar de em muitas situações
se encontrar no limiar da actuação administrativa e o controlo de
mérito da administração, sem o perigo de resvalação em
juristocracia.
[1]-
RAIMUNDO, Miguel Assis; Comentários
ao Novo Código de Procedimento Administrativo,
AAFDL Editora, 2015, pp 274
[2]-
RAIMUNDO, Miguel Assis; Comentários
ao Novo Código de Procedimento Administrativo,
AAFDL Editora, 2015, pp 276
[3]-
RAIMUNDO, Miguel Assis; Comentários
ao Novo Código de Procedimento Administrativo,
AAFDL Editora, 2015, pp 281
[4]-
RAIMUNDO, Miguel Assis; Comentários
ao Novo Código de Procedimento Administrativo,
AAFDL Editora, 2015, pp 282
[5]-
NOVAIS, Jorge Reis; Em
Defesa do Tribunal Constitucional,
Almedina, 2014, pp 82
André de Sousa Esteves
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