No
exercício das suas funções a Administração Pública conta com a denominada
margem de livre decisão. Já HANS KELSEN dizia que "a aplicação de normas jurídicas por órgãos da Administração ou pelos
tribunais, pressupõe sempre uma margem (mais ampla ou mais reduzida) de poder
de decisão". O professor Sérvulo Correia, intitulando esta margem de
livre decisão enquanto superconceito, divide-o em dois subconceitos - a
discricionariedade administrativa (1) e o preenchimento valorativo de conceitos
jurídicos indeterminados figurando na previsão de normas jurídicas através de
uma autonomia de valoração e prognose (2).
Na
sua obra, os professores MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS,
distinguem a discricionariedade administrativa da margem de livre apreciação
(segundo subconceitos supra mencionado) ao afirmar que esta corresponde à
"atribuição pela lei à Administração
de uma liberdade na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos
pressupostos das suas decisões [pressupostos presentes nas previsões de normas
jurídicas] e não, como sucede na discricionariedade, de uma liberdade de
escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis".
No
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (de agora adiante denominado por
STA) de 16-02-2017, que se irá de seguida analisar, surgem-nos importantes
problemas de distinção entre discricionariedade e margem de livre apreciação e,
consequentemente, a permissibilidade de controlo judicial das decisões tomadas
dentro desta área de limitada autonomia, por parte da Administração.
O
acórdão em apreço visa um recurso de revista interposto no STA para que este
avaliasse a validade legal do despacho nº 16477/2006 de 14 de Agosto, no qual o
então Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e do Desenvolvimento
Regional, determinou a dispensa total do procedimento de avaliação de impacte
ambiental no projecto de co-incineração de resíduos perigosos no Centro de
Produção de Souselas. Este despacho ministerial havia sido revogado em decisão
do Tribunal Central Administrativo Norte (de agora em diante denominado por
TCA-Norte).
Dita
a norma do art.3º/1 do DL 69/2000 de 3 de Maio o seguinte:
"Em
circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas, o licenciamento ou a
autorização de um projecto específico pode, por iniciativa do proponente e
mediante despacho do ministro responsável pela área do ambiente e do ministro
da tutela, ser efectuado com dispensa, total ou parcial, do procedimento de
AIA".
Primeiro,
cumpre averiguar se esta norma confere uma faculdade discricionária à
Administração, podendo esta optar por uma via de acção entre várias legalmente
possíveis; OU se estamos perante um caso de margem de livre apreciação,
em que caberia à Administração concretizar conceitos indeterminados na previsão
da norma, de forma a torná-la aplicável ao caso concreto. Posto nestes termos,
parece-nos claro que esta é uma situação de margem de livre apreciação, em que
o legislador concede ao órgão competente da Administração Pública a
determinação do que serão "circunstâncias excepcionais", desde que
justifique o porquê dessa excepcionalidade. De resto, nada disto se nos
apresenta como novo, uma vez que já é dever da Administração a fundamentação
das decisões que dão origem a actos administrativos (art.152º CPA) e que acaba
por funcionar como um limite ou controlo desta liberdade concedida à
Administração. Assim nos diz o acórdão em análise: " [O legislador] espera que a Administração, após considerar e descrever
fielmente as circunstâncias do caso, recorra à experiência e ao saber
administrativos para, dentro do espaço de liberdade relativa que acima
assinalámos, porventura as valorar como «excepcionais» e, por isso mesmo,
justificativas da dispensa do procedimento de AIA".
Sabemos
que, por ser impossível regular todo e qualquer caso passível de ser objecto de
actividade administrativa, o recurso à margem de livre apreciação por parte da
Administração Pública para aplicar normas gerais e abstractas ao caso concreto
(normalmente a partir de actos administrativos), se torna necessária e
frequente. Sobre a balança entre vantagens e desvantagens deste espaço de
autonomia acometido à Administração para preencher valorativamente o conteúdo
de conceitos indeterminados, apontam os professores MARCELO REBELO DE SOUSA e
ANDRÉ SALGADO MATOS que "a
existência de margem de livre apreciação administrativa envolve necessariamente
a perda de alguma segurança jurídica. […] No entanto, estas desvantagens são
compensadas por uma maior justiça e adequação de aplicação do Direito, e mesmo,
em certos casos, por uma maior igualdade, na medida em que se evita o
tratamento normativamente padronizado de situações que, olhadas microscopicamente,
revelam dissemelhanças relevantes".
É
de notar, ainda acerca deste ponto, a relativa confusão de terminologia entre
os conceitos de discricionariedade normativa e margem de livre apreciação que,
apesar de claramente distinguidos pela Doutrina, são utilizados ao longo do
presente acórdão como se de sinónimos se tratassem. Apesar da proximidade dos
conceitos, parece-me, contudo, que o problema em causa se deve ao preenchimento
valorativo do pressuposto de "circunstâncias excepcionais" na previsão
da norma e, portanto, um caso de margem de livre apreciação (e não um caso de
poder discricionário).
Um
segundo tema abordado neste acórdão consiste na possibilidade de controlo
jurisdicional de actos da Administração que se situam dentro da margem de livre
decisão e, em relação aos quais, existe uma menor vinculação da Administração
Pública e, contrariamente, uma maior autonomia (sempre limitada, mais que não
seja, pelo próprio princípio da legalidade).
Tal
como diz o professor FREITAS DO AMARAL, não existe controlo jurisdicional na
margem de livre apreciação, pois "permitir
que os Tribunais controlem o mérito do exercício da margem de livre decisão
administrativa seria permitir que, na verdade, exercessem a função
administrativa (criando assim uma «dupla administração») ".
Avaliar o mérito de uma decisão
administrativa, significa ponderar se o interesse público foi prosseguido da
melhor forma possível. Como definem os professores MARCELO REBELO DE SOUSA e
ANDRÉ SALGADO MATOS, o mérito "engloba
a apreciação da oportunidade (utilidade da concreta actuação administrativa
para a prossecução do interesse público legalmente prosseguido) e da
conveniência (utilidade da concreta actuação da Administração Pública para a
prossecução do interesse público legalmente definido à luz dos demais
interesses públicos envolvidos)". Acrescenta ainda WALTER SCHMIDT que
"A partir do momento em que uma
decisão discricionária não tachada de vícios foi proferida, essa será para o
Tribunal Administrativo a única válida. Todas as outras hipóteses de decisão se
tornaram «ipso facto» irrelevantes". De tudo isto retiramos que, por
forma a respeitar o princípio fundamental da separação de poderes, o tribunal
não poderá nunca substituir a Administração no preenchimento de conceitos
indeterminados, mas somente apreciar os vícios formais e de procedimento
segundo o qual o acto foi emitido. Exceptuam-se da proibição de controlo
jurisdicional as decisões que a Administração "incorra num juízo ostensivamente inadmissível ou manifestamente erróneo".
No
presente caso, parece o Ministro competente ter fundamentado claramente no
despacho o porquê da excepcionalidade de circunstâncias que levou à dispensa de
AIA - a urgência do projecto e a existência de uma prévia avaliação que não
registara riscos significativamente maiores de deterioração ambiental.
Atentando no que foi dito, parece-me clara e acertada a afirmação do STA
segundo a qual "o TCA dispôs-se a
emitir um juízo substitutivo sobre o assunto. E, ao fazê-lo, excedeu os seus
poderes de sindicância, pois penetrou num espaço decisório reservado à
Administração".
Inês Carôla
Cavaco
Nº28184
Bibliografia:
- CORREIA, Sérvulo;
"Margem de livre decisão, equidade e preenchimento de lacunas: As
afinidades e os seus limites" in Estudos
em Homenagem a Miguel Galvão Telles - Volume I; 2012, Almedina (Coimbra).
- FREITAS DO AMARAL,
Diogo; Curso de Direito Administrativo -
Volume II; 2016 (3ª edição), Almedina.
-
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO MATOS, André; Direito Administrativo Geral: Tomo I - Introdução e Princípios
Fundamentais; 2008 (3ª edição), D. Quixote.
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