sexta-feira, 7 de abril de 2017

A Margem de Livre Apreciação e o Limite de Controlo Jurisdicional no Acórdão do STA de 16-02-2017


No exercício das suas funções a Administração Pública conta com a denominada margem de livre decisão. Já HANS KELSEN dizia que "a aplicação de normas jurídicas por órgãos da Administração ou pelos tribunais, pressupõe sempre uma margem (mais ampla ou mais reduzida) de poder de decisão". O professor Sérvulo Correia, intitulando esta margem de livre decisão enquanto superconceito, divide-o em dois subconceitos - a discricionariedade administrativa (1) e o preenchimento valorativo de conceitos jurídicos indeterminados figurando na previsão de normas jurídicas através de uma autonomia de valoração e prognose (2).
Na sua obra, os professores MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, distinguem a discricionariedade administrativa da margem de livre apreciação (segundo subconceitos supra mencionado) ao afirmar que esta corresponde à "atribuição pela lei à Administração de uma liberdade na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões [pressupostos presentes nas previsões de normas jurídicas] e não, como sucede na discricionariedade, de uma liberdade de escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis".
No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (de agora adiante denominado por STA) de 16-02-2017, que se irá de seguida analisar, surgem-nos importantes problemas de distinção entre discricionariedade e margem de livre apreciação e, consequentemente, a permissibilidade de controlo judicial das decisões tomadas dentro desta área de limitada autonomia, por parte da Administração.
O acórdão em apreço visa um recurso de revista interposto no STA para que este avaliasse a validade legal do despacho nº 16477/2006 de 14 de Agosto, no qual o então Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, determinou a dispensa total do procedimento de avaliação de impacte ambiental no projecto de co-incineração de resíduos perigosos no Centro de Produção de Souselas. Este despacho ministerial havia sido revogado em decisão do Tribunal Central Administrativo Norte (de agora em diante denominado por TCA-Norte).
Dita a norma do art.3º/1 do DL 69/2000 de 3 de Maio o seguinte:
"Em circunstâncias excepcionais e devidamente fundamentadas, o licenciamento ou a autorização de um projecto específico pode, por iniciativa do proponente e mediante despacho do ministro responsável pela área do ambiente e do ministro da tutela, ser efectuado com dispensa, total ou parcial, do procedimento de AIA".
Primeiro, cumpre averiguar se esta norma confere uma faculdade discricionária à Administração, podendo esta optar por uma via de acção entre várias legalmente possíveis; OU se estamos perante um caso de margem de livre apreciação, em que caberia à Administração concretizar conceitos indeterminados na previsão da norma, de forma a torná-la aplicável ao caso concreto. Posto nestes termos, parece-nos claro que esta é uma situação de margem de livre apreciação, em que o legislador concede ao órgão competente da Administração Pública a determinação do que serão "circunstâncias excepcionais", desde que justifique o porquê dessa excepcionalidade. De resto, nada disto se nos apresenta como novo, uma vez que já é dever da Administração a fundamentação das decisões que dão origem a actos administrativos (art.152º CPA) e que acaba por funcionar como um limite ou controlo desta liberdade concedida à Administração. Assim nos diz o acórdão em análise: " [O legislador] espera que a Administração, após considerar e descrever fielmente as circunstâncias do caso, recorra à experiência e ao saber administrativos para, dentro do espaço de liberdade relativa que acima assinalámos, porventura as valorar como «excepcionais» e, por isso mesmo, justificativas da dispensa do procedimento de AIA".
Sabemos que, por ser impossível regular todo e qualquer caso passível de ser objecto de actividade administrativa, o recurso à margem de livre apreciação por parte da Administração Pública para aplicar normas gerais e abstractas ao caso concreto (normalmente a partir de actos administrativos), se torna necessária e frequente. Sobre a balança entre vantagens e desvantagens deste espaço de autonomia acometido à Administração para preencher valorativamente o conteúdo de conceitos indeterminados, apontam os professores MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS que "a existência de margem de livre apreciação administrativa envolve necessariamente a perda de alguma segurança jurídica. […] No entanto, estas desvantagens são compensadas por uma maior justiça e adequação de aplicação do Direito, e mesmo, em certos casos, por uma maior igualdade, na medida em que se evita o tratamento normativamente padronizado de situações que, olhadas microscopicamente, revelam dissemelhanças relevantes".
É de notar, ainda acerca deste ponto, a relativa confusão de terminologia entre os conceitos de discricionariedade normativa e margem de livre apreciação que, apesar de claramente distinguidos pela Doutrina, são utilizados ao longo do presente acórdão como se de sinónimos se tratassem. Apesar da proximidade dos conceitos, parece-me, contudo, que o problema em causa se deve ao preenchimento valorativo do pressuposto de "circunstâncias excepcionais" na previsão da norma e, portanto, um caso de margem de livre apreciação (e não um caso de poder discricionário).
Um segundo tema abordado neste acórdão consiste na possibilidade de controlo jurisdicional de actos da Administração que se situam dentro da margem de livre decisão e, em relação aos quais, existe uma menor vinculação da Administração Pública e, contrariamente, uma maior autonomia (sempre limitada, mais que não seja, pelo próprio princípio da legalidade).
Tal como diz o professor FREITAS DO AMARAL, não existe controlo jurisdicional na margem de livre apreciação, pois "permitir que os Tribunais controlem o mérito do exercício da margem de livre decisão administrativa seria permitir que, na verdade, exercessem a função administrativa (criando assim uma «dupla administração») ".
 Avaliar o mérito de uma decisão administrativa, significa ponderar se o interesse público foi prosseguido da melhor forma possível. Como definem os professores MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, o mérito "engloba a apreciação da oportunidade (utilidade da concreta actuação administrativa para a prossecução do interesse público legalmente prosseguido) e da conveniência (utilidade da concreta actuação da Administração Pública para a prossecução do interesse público legalmente definido à luz dos demais interesses públicos envolvidos)". Acrescenta ainda WALTER SCHMIDT que "A partir do momento em que uma decisão discricionária não tachada de vícios foi proferida, essa será para o Tribunal Administrativo a única válida. Todas as outras hipóteses de decisão se tornaram «ipso facto» irrelevantes". De tudo isto retiramos que, por forma a respeitar o princípio fundamental da separação de poderes, o tribunal não poderá nunca substituir a Administração no preenchimento de conceitos indeterminados, mas somente apreciar os vícios formais e de procedimento segundo o qual o acto foi emitido. Exceptuam-se da proibição de controlo jurisdicional as decisões que a Administração "incorra num juízo ostensivamente inadmissível ou manifestamente erróneo".
No presente caso, parece o Ministro competente ter fundamentado claramente no despacho o porquê da excepcionalidade de circunstâncias que levou à dispensa de AIA - a urgência do projecto e a existência de uma prévia avaliação que não registara riscos significativamente maiores de deterioração ambiental. Atentando no que foi dito, parece-me clara e acertada a afirmação do STA segundo a qual "o TCA dispôs-se a emitir um juízo substitutivo sobre o assunto. E, ao fazê-lo, excedeu os seus poderes de sindicância, pois penetrou num espaço decisório reservado à Administração".
Inês Carôla Cavaco
Nº28184
Bibliografia:
- CORREIA, Sérvulo; "Margem de livre decisão, equidade e preenchimento de lacunas: As afinidades e os seus limites" in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Telles - Volume I; 2012, Almedina (Coimbra).
- FREITAS DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Volume II; 2016 (3ª edição), Almedina.
- REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO MATOS, André; Direito Administrativo Geral: Tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais; 2008 (3ª edição), D. Quixote.

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