sábado, 15 de abril de 2017

A Audiência dos Interessados e o Acórdão do TCA-Norte de 09-06-2011



O instituto da audiência prévia dos interessados apareceu pela primeira vez codificado no CPA de 1991, nos artigos 100º e ss. Esta inovação, que inseria a audiência prévia dos interessados entre a fase de instrução e a fase da decisão final no CPA de 1991, viria a ser caracterizada por FREITAS DO AMARAL como uma "pequena-grande revolução na nossa ordem jurídica". E para JOÃO CAUPERS "a inclusão desta fase no procedimento administrativo poderá considerar-se a mais importante modificação introduzida pelo antigo CPA". Actualmente, a audiência dos interessados durante o procedimento administrativo decisório encontra-se prevista nos artigos 121º e ss CPA de 2015.
De facto, esta nova fase no procedimento administrativo viria assegurar, aos interessados no procedimento, o direito de participarem na formação de decisões que lhes digam respeito. Para FREITAS DO AMARAL e VASCO PEREIRA DA SILVA, a audiência prévia seria não só a consagração de dois princípios reguladores da actividade administrativa presentes nos artigos 11º e 12º CPA (princípio da colaboração com os particulares e princípio da participação, respectivamente), como teriam também uma base constitucional no art.2º (garante de uma democracia representativa) e no art.267º/5 CRP, que afirma claramente que deverá ser assegurada a "participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito".
Sobre o carácter da audiência dos interessados enquanto postulado de uma democracia representativa, escreve VASCO PEREIRA DA SILVA que "a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões administrativas apresenta uma função legitimadora, característica de uma Administração Publica democrática, permitindo aos administrados a protecção dos seus direitos e interesses legalmente protegidos em face da Administração e conduzindo a um aumento da eficácia da actividade administrativa".
Os benefícios da inserção desta figura no Direito Administrativo parecem evidentes, já que numa anterior "Administração Pública isolada, unilateral e autoritária" (FREITAS DO AMARAL), o particular não poderia ter certezas de que o seu pedido fora convenientemente estudado ou as suas razões devidamente ponderadas, apresentando-se a decisão final da Administração como uma «total surpresa». Quanto às desvantagens da audiência dos interessados, que para VASCO PEREIRA DA SILVA se poderiam somente prender com uma "maior morosidade do procedimento administrativo", responde o mesmo autor que "todos os atrasos serão compensados pelos benefícios de se encontrar uma decisão mais justa, mais útil e mais oportuna".
É de notar que o art.121º/1 CPA confere não só ao interessado a oportunidade de "ser ouvido no procedimento antes de ser tomada a decisão final", como também o direito de "ser informado sobre o sentido provável desta [decisão] ". Este dever da Administração indicar o sentido provável da sua decisão prende-se, tal como explica FREITAS DO AMARAL, com o facto de "só se o particular souber o que é que a Administração projecta fazer relativamente à pretensão que ele apresentou e por que razões é que se prepara para lhe indeferir essa pretensão, é que ele pode com utilidade contra-argumentar". O art.124º/1 CPA lista ainda as hipóteses em que se pode dispensar a audiência dos interessados, sendo que uma delas (alínea f) ocorre quando a decisão da Administração for totalmente favorável ao interessado, o que nos leva a concluir que, nesta fase do procedimento, a Administração Pública já terá um sentido de decisão suficientemente estruturado e estável, pelo que o deverá comunicar ao interessado, "mais que não seja por boa-fé" (VASCO PEREIRA DA SILVA).
A questão que se tem debatido da Doutrina, contudo, é o que acontece quando não ocorre a audiência dos interessados numa situação em que não se prevê a dispensa dessa fase do procedimento. É certo que neste caso estamos perante uma ilegalidade por vício de forma, mas cumpre saber se a consequência jurídica será a nulidade ou a anulabilidade da decisão administrativa. A favor da nulidade, argumenta VASCO PEREIRA DA SILVA que "uma decisão administrativa praticada sem a audiência dos particulares interessados viola o conteúdo essencial de um direito fundamental, pelo que deve ser considerada nula" (por força do art.161º/2/d CPA) ou ainda que a audiência dos interessados é uma formalidade essencial do procedimento, levando a sua preterição à sanção de nulidade da decisão por força do art.162º/2/l CPA. A favor desta posição pronunciam-se também PAULO OTERO e SÉRVULO CORREIA. A favor da anulabilidade estão FREITAS DO AMARAL, PEDRO MACHETE e JOÃO CAUPERS que consideram que a não realização da audiência dos interessados quando esta era devida prejudica não direitos fundamentais (que são aqueles mais ligados à protecção da dignidade da pessoa humana), mas somente um direito subjectivo do sistema de protecção dos particulares face à Administração Pública. Esta segunda posição parece ser também a dominantemente seguida pela jurisprudência administrativa.
Tecidas estas considerações gerais sobre o instituto da audiência dos interessados, cabe analisar a importância do mesmo no caso do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCA-Norte) de 09/06/2011. O caso consiste num recurso de uma decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF Porto), que afirmava a validade de um acto administrativo que ordenava uma empresa de comércio de automóveis a demolir um pré-fabricado e a cessar a utilização do espaço afecto à exposição e comercialização de veículos automóveis, devido à falta de licença de construção do stand e licença para utilização comercial do terreno. Assim, a recorrente (a empresa de comércio de automóveis) fundamentava o recurso da decisão do TAF Porto, entre outras razões, na preterição da audiência dos interessados, claramente necessária no caso, por não se inserir em nenhuma das categorias de dispensa desta fase do procedimento decisório administrativo.
A recorrente afirmava que "a entidade administrativa não se pode limitar à não adesão ao alegado em audiência prévia, ou a um atestado de irrelevância ou impertinência do alegado, antes tem o dever de esclarecer o particular sobre a posição assumida". Tal ponto parece claro e, vem o TCA-Norte até afirmar no acórdão em questão que "o cumprimento do dever de audiência prévia que se impõe aos órgãos decisores da Administração, não poderá traduzir-se num mero formalismo balofo, que se cumpre sem consequências". [sublinhado adicionado] Parece-nos, então, querer o Tribunal afirmar que, mesmo que realizada a audiência dos interessados, se não for atribuída ao particular a possibilidade de efectivamente participar no processo decisório que lhe diga respeito, então não se encontram cumpridas as exigências do regime presente nos artigos 121º e ss CPA.
Apesar de tudo, veio o mesmo TCA-Norte a constatar, que a audiência dos interessados realizada não tinha sido servido somente para efeitos de "cumprimento cego de formalismos procedimentais", tendo de facto a recorrente sido ouvida pelos órgãos a quem cabia a decisão e não tendo apresentado factos novos que pudessem mudar o sentido da mesma. Desta forma, traduzir-se-ia a audiência prévia dos interessados "na audição efectiva do interessado, de modo a que as questões novas por ele suscitadas, e pertinentes para a decisão administrativa definitiva, sejam efectivamente ponderadas pelo órgão decisor". Salvaguarda-se, no entanto, que "o seu cumprimento [da audiência dos interessados] não vai ao ponto de exigir a este órgão que analise questões que nada acrescentam à situação subjacente ao projecto de decisão, e que se traduzem, apenas, numa tentativa de enredar e protelar a decisão definitiva".
Por não se ter a recorrente pronunciado sobre "questões com interesse para a decisão, em matéria de facto e direito" (tal como exige o art.121º/2 CPA), mas somente adicionado factos que não afectavam o sentido da decisão da Administração, considerou o TCA-Norte que a recorrente não tinha razão, por se terem cumprido os requisitos da audiência dos interessados previstos na regulação do procedimento administrativo, ao contrário do alegado por aquela. Com fundamento nesta e outras razões discutidas no mesmo acórdão, chegaram os Juízes do TCA-Norte por unanimidade à decisão de manter o acórdão recorrido do TAF Porto.
Inês Carôla Cavaco
Nº28184
Bibliografia:
- Acórdão do TCA-Norte de 09/06/2011 in www.dgsi.pt [último acesso em 13 de Abril de 2017].
- CAUPERS, João; EIRÓ, Vera; Introdução ao Direito Administrativo; 2016 (12ª edição), Âncora Editora.
- FREITAS DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Volume II; 2016 (3ª edição), Almedina.
- PEREIRA DA SILVA, Vasco; Em Busca do Acto Administrativo Perdido; 2016 (Reimpressão), Almedina.

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