O
instituto da audiência prévia dos interessados apareceu pela primeira vez
codificado no CPA de 1991, nos artigos 100º e ss. Esta inovação, que inseria a
audiência prévia dos interessados entre a fase de instrução e a fase da decisão
final no CPA de 1991, viria a ser caracterizada por FREITAS DO AMARAL como uma
"pequena-grande revolução na nossa
ordem jurídica". E para JOÃO CAUPERS "a inclusão desta fase no procedimento administrativo poderá
considerar-se a mais importante modificação introduzida pelo antigo CPA".
Actualmente, a audiência dos interessados durante o procedimento administrativo
decisório encontra-se prevista nos artigos 121º e ss CPA de 2015.
De
facto, esta nova fase no procedimento administrativo viria assegurar, aos
interessados no procedimento, o direito de participarem na formação de decisões
que lhes digam respeito. Para FREITAS DO AMARAL e VASCO PEREIRA DA SILVA, a
audiência prévia seria não só a consagração de dois princípios reguladores da
actividade administrativa presentes nos artigos 11º e 12º CPA (princípio da
colaboração com os particulares e princípio da participação, respectivamente),
como teriam também uma base constitucional no art.2º (garante de uma democracia
representativa) e no art.267º/5 CRP, que afirma claramente que deverá ser
assegurada a "participação dos
cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito".
Sobre
o carácter da audiência dos interessados enquanto postulado de uma democracia
representativa, escreve VASCO PEREIRA DA SILVA que "a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões
administrativas apresenta uma função legitimadora, característica de uma
Administração Publica democrática, permitindo aos administrados a protecção dos
seus direitos e interesses legalmente protegidos em face da Administração e
conduzindo a um aumento da eficácia da actividade administrativa".
Os
benefícios da inserção desta figura no Direito Administrativo parecem evidentes,
já que numa anterior "Administração
Pública isolada, unilateral e autoritária" (FREITAS DO AMARAL), o
particular não poderia ter certezas de que o seu pedido fora convenientemente
estudado ou as suas razões devidamente ponderadas, apresentando-se a decisão
final da Administração como uma «total surpresa». Quanto às desvantagens da
audiência dos interessados, que para VASCO PEREIRA DA SILVA se poderiam somente
prender com uma "maior morosidade do
procedimento administrativo", responde o mesmo autor que "todos os atrasos serão compensados pelos
benefícios de se encontrar uma decisão mais justa, mais útil e mais oportuna".
É
de notar que o art.121º/1 CPA confere não só ao interessado a oportunidade de
"ser ouvido no procedimento antes de
ser tomada a decisão final", como também o direito de "ser informado sobre o sentido provável desta
[decisão] ". Este dever da Administração indicar o sentido provável da
sua decisão prende-se, tal como explica FREITAS DO AMARAL, com o facto de
"só se o particular souber o que é
que a Administração projecta fazer relativamente à pretensão que ele apresentou
e por que razões é que se prepara para lhe indeferir essa pretensão, é que ele
pode com utilidade contra-argumentar". O art.124º/1 CPA lista ainda as
hipóteses em que se pode dispensar a audiência dos interessados, sendo que uma
delas (alínea f) ocorre quando a decisão da Administração for totalmente
favorável ao interessado, o que nos leva a concluir que, nesta fase do
procedimento, a Administração Pública já terá um sentido de decisão
suficientemente estruturado e estável, pelo que o deverá comunicar ao
interessado, "mais que não seja por
boa-fé" (VASCO PEREIRA DA SILVA).
A
questão que se tem debatido da Doutrina, contudo, é o que acontece quando não
ocorre a audiência dos interessados numa situação em que não se prevê a
dispensa dessa fase do procedimento. É certo que neste caso estamos perante uma
ilegalidade por vício de forma, mas cumpre saber se a consequência jurídica
será a nulidade ou a anulabilidade da decisão administrativa. A favor da
nulidade, argumenta VASCO PEREIRA DA SILVA que "uma decisão administrativa praticada sem a audiência dos particulares
interessados viola o conteúdo essencial de um direito fundamental, pelo que
deve ser considerada nula" (por força do art.161º/2/d CPA) ou ainda
que a audiência dos interessados é uma formalidade essencial do procedimento,
levando a sua preterição à sanção de nulidade da decisão por força do
art.162º/2/l CPA. A favor desta posição pronunciam-se também PAULO OTERO e SÉRVULO
CORREIA. A favor da anulabilidade estão FREITAS DO AMARAL, PEDRO MACHETE e JOÃO
CAUPERS que consideram que a não realização da audiência dos interessados
quando esta era devida prejudica não direitos fundamentais (que são aqueles
mais ligados à protecção da dignidade da pessoa humana), mas somente um direito
subjectivo do sistema de protecção dos particulares face à Administração
Pública. Esta segunda posição parece ser também a dominantemente seguida pela
jurisprudência administrativa.
Tecidas
estas considerações gerais sobre o instituto da audiência dos interessados,
cabe analisar a importância do mesmo no caso do acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte (TCA-Norte) de 09/06/2011. O caso consiste num recurso de
uma decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF Porto), que
afirmava a validade de um acto administrativo que ordenava uma empresa de
comércio de automóveis a demolir um pré-fabricado e a cessar a utilização do
espaço afecto à exposição e comercialização de veículos automóveis, devido à
falta de licença de construção do stand
e licença para utilização comercial do terreno. Assim, a recorrente (a empresa
de comércio de automóveis) fundamentava o recurso da decisão do TAF Porto,
entre outras razões, na preterição da audiência dos interessados, claramente
necessária no caso, por não se inserir em nenhuma das categorias de dispensa
desta fase do procedimento decisório administrativo.
A
recorrente afirmava que "a entidade
administrativa não se pode limitar à não adesão ao alegado em audiência prévia,
ou a um atestado de irrelevância ou impertinência do alegado, antes tem o dever
de esclarecer o particular sobre a posição assumida". Tal ponto parece
claro e, vem o TCA-Norte até afirmar no acórdão em questão que "o cumprimento do dever de audiência prévia
que se impõe aos órgãos decisores da Administração, não poderá traduzir-se num mero formalismo balofo, que se cumpre sem
consequências". [sublinhado adicionado] Parece-nos, então, querer
o Tribunal afirmar que, mesmo que realizada a audiência dos interessados, se
não for atribuída ao particular a possibilidade de efectivamente participar no
processo decisório que lhe diga respeito, então não se encontram cumpridas as
exigências do regime presente nos artigos 121º e ss CPA.
Apesar
de tudo, veio o mesmo TCA-Norte a constatar, que a audiência dos interessados
realizada não tinha sido servido somente para efeitos de "cumprimento cego de formalismos
procedimentais", tendo de facto a recorrente sido ouvida pelos órgãos
a quem cabia a decisão e não tendo apresentado factos novos que pudessem mudar
o sentido da mesma. Desta forma, traduzir-se-ia a audiência prévia dos
interessados "na audição efectiva do
interessado, de modo a que as questões novas por ele suscitadas, e pertinentes
para a decisão administrativa definitiva, sejam efectivamente ponderadas pelo
órgão decisor". Salvaguarda-se, no entanto, que "o seu cumprimento [da audiência dos
interessados] não vai ao ponto de exigir a este órgão que analise questões que
nada acrescentam à situação subjacente ao projecto de decisão, e que se
traduzem, apenas, numa tentativa de enredar e protelar a decisão definitiva".
Por
não se ter a recorrente pronunciado sobre "questões com interesse para a decisão, em matéria de facto e direito"
(tal como exige o art.121º/2 CPA), mas somente adicionado factos que não
afectavam o sentido da decisão da Administração, considerou o TCA-Norte que a
recorrente não tinha razão, por se terem cumprido os requisitos da audiência
dos interessados previstos na regulação do procedimento administrativo, ao
contrário do alegado por aquela. Com fundamento nesta e outras razões
discutidas no mesmo acórdão, chegaram os Juízes do TCA-Norte por unanimidade à
decisão de manter o acórdão recorrido do TAF Porto.
Inês Carôla
Cavaco
Nº28184
Bibliografia:
- Acórdão do TCA-Norte
de 09/06/2011 in www.dgsi.pt [último acesso em 13 de Abril de 2017].
- CAUPERS, João; EIRÓ,
Vera; Introdução ao Direito
Administrativo; 2016 (12ª edição), Âncora Editora.
- FREITAS DO AMARAL,
Diogo; Curso de Direito Administrativo -
Volume II; 2016 (3ª edição), Almedina.
-
PEREIRA DA SILVA, Vasco; Em Busca do Acto
Administrativo Perdido; 2016 (Reimpressão), Almedina.
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