sexta-feira, 7 de abril de 2017

Da visão histórica do procedimento administrativo

O texto que se segue pretende expor, de forma sucinta e concisa, as várias visões históricas relativas ao procedimento administrativo.
O procedimento administrativo é, segundo o artigo 1º do Código do Procedimento Administrativo, a sucessão ordenada de atos e formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da Administração Pública. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, esta definição dada pelo legislador é não só uma visão ultrapassada do procedimento como também uma das justificações utilizadas para explicar decisões criticáveis por parte da Administração[1].
                Em termos históricos, existem três construções fundamentais de doutrina jus-administrativa relativas a questões procedimentais. A primeira construção, na perspetiva do Professor Vasco Pereira da Silva, é a negacionista da autonomia do procedimento e corresponde à opinião dominante no direito francês. Segundo esta clássica visão de origem jurisprudencial, o procedimento administrativo não é valorizado na tomada de decisões, ou seja, há uma desconsideração – ou, em alguns casos, secundarização - da relevância autónoma do procedimento e privilegia-se a visão contenciosa de análise do Direito Administrativo. Assim, o legislador não se preocupa com o procedimento administrativo, concentra-se, antes, no ato e processo administrativos: o ato administrativo - centro do direito administrativo - é a única realidade que releva no processo administrativo, processo este que serve para anular atos administrativos. Uma das consequências necessárias desta corrente é o descurar do procedimento administrativo pois, quando considerado (porque pode não o ser), serve apenas para explicar a formação da decisão final da Administração enquanto instrumento ao serviço do ato administrativo.
Em segundo lugar, cabe-nos referir outra construção dos primórdios do direito administrativo que tem por base o positivismo jurídico dos finais do século XIX. Segundo esta corrente, representada por um grande setor das doutrinas austríaca e alemã – embora que com algumas diferenças -, o poder administrativo e o poder jurisdicional são equiparáveis na medida em que ambos correspondem a funções secundárias e derivadas que concretizam a vontade da lei. Consequentemente, e seguindo esta linha de pensamento, processo e procedimento são igualmente equiparados e este último é visto como uma realidade de natureza processual – doutrina defendida, em Portugal, pelo Professor Marcelo Caetano, por toda a Escola de Lisboa dos anos 60/70 e ainda, mais recentemente, pelo Professor Freitas do Amaral. Segundo Mario Nigro, há uma “deslocação do centro de gravidade da atividade: do ato administrativo (…) para o próprio iter formação da decisão”[2], o que significa que “o procedimento deixa de ser visto em função do ato final para passar a ser considerado em si mesmo, enquanto manifestação genuína e específica da atividade administrativa”[3]. A dogmática austríaca é uma das pioneiras na valorização teórica e prática do procedimento administrativo, facto que se verifica no elevado nível de detalhe – e extensão - do seu Código de Processo Administrativo. Na Alemanha, o procedimento administrativo é alvo de grande discussão doutrinária, pelo que o objetivo da dogmática alemã é encontrar uma solução que equilibre e conjugue o procedimento, o direito material e a proteção judicial, tendo em conta a dupla dimensão do procedimento, tanto enquanto instrumento de correção e legitimidade da atuação administrativa, como meio de defesa do cidadão perante autoridades administrativas.
                A terceira posição é, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, aquela que o legislador português parece ter adotado em 2015: a da autonomia limitada do procedimento em relação às formas de atuação administrativa. Tendo por base o suprarreferido artigo do CPA, podemos concluir que o procedimento não é valorado enquanto tal, na medida em que se destina à execução da vontade dos órgãos da Administração Pública. Assim, ainda que relativamente às construções anteriores tenha alguma autonomia, essa autonomia é muito relativa pois surge como uma realidade funcionalmente subordinada, especialmente ao ato administrativo. Segundo Sandulli[4], o procedimento é “uma sucessão coordenada de atos preordenados em relação a um fim unitário”; esta noção é elaborada em razão do produto final da atuação administrativa que é, na maior parte das vezes, um ato administrativo. Assim, para Sandulli, o procedimento tanto é um fenómeno autónomo como uma realidade funcionalmente subordinada às formas de atuação da Administração.
                Para o Professor Vasco Pereira da Silva, a orientação mais correta e atual é a que valoriza autonomamente o procedimento como uma realidade que vale por si mesma. Deste modo, quando forem preteridas as regras procedimentais, a única consequência admissível é a de considerar a invalidade do ato administrativo. De acordo com este ponto de vista, o procedimento não conduz única e exclusivamente a um produto final nem funciona como um simples instrumento formal; é, antes, um instrumento de democratização e legitimidade da Administração Pública.


Carolina Miguel Pedro Ferreira
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[1] AMARAL, Diogo Freitas do; Direito Administrativo, volume III, Lisboa, 1989;
[2] NIGRO, Mario; Diritto Amministrativo e Processo Amministrativo nel Bilancio di Dieci Anni di Giurisprudenza, in ALLEGRETTI / BATTAGLINI / SORACE - Diritto Amministrativo e Giustizia Amministrativa nel Bilancio di un Decennio di Giurisprudenza, tomo II, Maggioli Editore, Rimini, 1987;
[3] SILVA, Vasco Pereira da; Em busca do ato administrativo perdido, Almedina, Coimbra, 1998;
[4] SANDULLI, Aldo; Il Procedimento Amministrativo, volume I, XV edição, Jovene, Napoli, 1989;

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