quinta-feira, 6 de abril de 2017

Acórdão: 9 de dezembro de 1938 (Caso Maria da Conceição)

          A 18 de agosto de 1937 foi enterrada Damásia de Oliveira doente do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e que tivera sido transferida do Hospital de São José (Lisboa) com diagnóstico provisório de sarampo. Duas semanas depois, apurou-se que a criança sepultada não tivera sido esta, mas a que se encontrara na cama do lado e com situação idêntica, Maria Adelaide Martins Ribeiro. Caso este que se tornou num dos mais mediáticos da imprensa nacional da altura e à posteriori. A 9 de dezembro de 1938, o Supremo Tribunal Administrativo de Lisboa (STA) manifesta-se sobre o mesmo ficando o acórdão, desse mesmo dia, popularmente conhecido como Caso Maria da Conceição[1].
Maria da Conceição, enfermeira acusada da troca de crianças,  recorreu ao STA pelo despacho do sr.enfermeiro-mor dos Hospitais Civis de Lisboa de 16 de dezembro de 1937, publicado no Diário do Governo, 2ª série, de 27 do mesmo mês e ano, pelo qual fora demitida do cargo de enfermeira praticante no período post-escolar dos mesmos Hospitais, alegando que no processo disciplinar que lhe fora movido se haviam praticado irregularidades graves, sobretudo a de lhe não haver sido facultado todo o processo acusatório, tendo havido também violação da lei, ofensa de direitos adquiridos da recorrente e desvio de poder na aplicação da pena, que tivera em vista dar uma satisfação à opinião pública alarmada com um caso de troca de crianças a que a imprensa dera grande publicidade e relevo, sendo os factos ocorridos apenas devido à má organização dos serviços e não constituindo por isso faltas disciplinares, não podendo de modo algum justificar a aplicação de qualquer pena e muito menos a de demissão[2]
O Supremo Tribunal Administrativo concluiu que:
a)      O recurso tinha fundamentação consistente e deveria prosseguir;
b)   A troca de crianças não seria da responsabilidade da enfermeira, mas uma deficiência dos serviços[3], sendo esta motivada pela falta de organização dos mesmos e na noite da ocorrência estariam cerca de quarenta doentes nos quartos do pavilhão nº 3 do respetivo hospital, razão que levara à difícil movimentação e identificação do corpo clínico e dos doentes;
c)       Conseguiu-se apurar que as duas crianças eram da mesma idade (dois anos) e devido à suas estaturas serem aproximadas, adicionando a situação acima descrita, o momento em que enfermeira encontrou a primeira criança no chão, Maria Adelaide, levou-a erroneamente a colocar a bebé na cama de Damásia de Oliveira originando deste modo a referida troca;
d)    A apelante apenas tivera cometido uma  falta de leve indicação errada do nome da possuidora de uns brincos [4] e que a mesma não tivera causado qualquer problema para o hospital ou terceiro, sendo a sanção máxima uma pena bastante leve [5];
e)      Fora mencionada uma situação similar à descrita no ponto c), porém com dois doentes em que um deles tinha seis anos e outro seis meses e a enfermeira responsável apenas tivera recebido quinze dias de correctivo;
f)  Pela celeridade que o enfermeiro-mor enviou uma nota à comunicação social respondendo a várias questões que estavam a ser mediatizadas nos mídia: Por despacho do enfermeiro-mor de 16 do corrente foi imposta a pena de demissão à enfermeira de vela na noite de 16 para 17 de agosto último ao pavilhão nº3 do Hospital Curry Cabral, por se ter provado, em processo disciplinar, haver lançado trocadas nos respectivos registos de temperaturas de duas crianças entradas nessa noite, do que resultou a troca de documentação e, por isso, da identidade das referidas crianças. [6]  Nota esta que informou o castigo aplicado à responsável como zelou pela imagem, bom nome e reputação dos serviços hospitalares;
g)  E por se concluir que todo o processo se tivera desenrolado com falta de provas documentais e testemunhais  e num espírito de probabilidades e hipóteses. 
Os factos apontados levaram o magistrado do Ministério Público a concluir que a pena atribuída à enfermeira do respectivo caso tinha como finalidade a satisfação à opinião pública [7] e consequentemente o desvio de poder estaria comprovado. Por desvio de poder entende-se que os funcionários administrativos, na prática dos actos para que a lei lhes atribui competência, devem ter em vista apenas o “fim” que determinou a lei, e os seus actos são viciados sempre que eles, embora no exercício dum poder legal e com as formalidades que a lei preceitua, não tiverem realmente em vista, ao praticar o acto, o fim que a lei visou atribuir-lhes essa competência, e procederam exclusivamente com um fim diverso[8], logo estar-se-ia perante um ato viciado e o desvalor jurídico aplicável seria a ilegalidade. Em relação à temática do vício Supremo Tribunal Administrativo indicou no acórdão de 29 de junho de 1938 que não devem os tribunais do Contencioso pronunciar a anulação por desvio de poder, fazendo-o consistir em factos que, embora provados pelas testemunhas inquiridas no processo, não foram alegados na respectiva petição inicial. E isto porque os reclamantes, digo, reclamados, aceitando como fundamento da reclamação somente os factos especificados na petição inicial, apenas a estas, para os inutilizar, ou dar-lhes uma interpretação diversa, opuseram na contestação os factos sobre que fariam recair a sua prova[9]. Porém, o vício de desvio de poder poderá cruzar-se com um poder conferido à administração atribuído por lei, o poder discricionário. A discricionário seria a capacidade tutelada à administração de a mesma ter uma margem de decisão e de apreciação no caso concreto. Na sua tipificação a lei não regula todas as matérias, em todos os cenários e circunstâncias e nessas matérias a administração tem uma margem. Mas, a administração nunca chega a ser inteiramente discricionária já que estaria vinculada a todo o procedimento que adotou e as decisões tomadas exigem sempre uma fundamentação.
                Comprovou-se que a decisão tomada pelo enfermeiro-mor teria apoio nas possíveis faltas disciplinares anteriormente cometidas e em nada se relacionariam com o caso em questão, mas  serviriam de base e sustento para a culminação da pena máxima de demissão. Todavia, nas declarações que o superior hierárquico fizera indicou a legislação que lhe confere competência para aplicar pena aos subordinados e lembrar que o processo disciplinar esclarecia suficientemente as faltas praticadas pela recorrente[10]. Com base nas declarações seria justificável que a decisão tomada  se teria suportado na letra da lei. A Administração Pública rege-se estritamente pela lei e pelo Direito, artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) qualquer decisão terá que ser suportada com base legal e jurídica,uma vez que a administração não é livre. Contudo, verificou-se que a conduta tomada extravasou os fins da lei, a pena não castigou a trabalhadora pelas faltas disciplinares realizadas e comprovadas (pela mesma)  no processo, mas uma acusação que pretendera encontrar um “bode expiatório” pela troca ocorrida, mantendo intocável a reputação do hospital e dar resposta à dúvida pública que  tivera nascido com o caso . Assim, surge o principal objectivo da administração: a prossecução do interesse público e da protecção dos direitos dos interesses dos cidadãos, artigo 4º CPA. O Professor Rogério Soares refere que das três funções do Estado a única livre é a de legislar[11], mas a utilização dessa “liberdade” apenas poderá ser utilizada na tutela do interesse público[12]. Podemos entender por interesse público um não interesse abstracto ou um bem que pertença a uma esfera totalmente distinta da esfera do cidadão:” o interesse público é sem perder a sua qualidade de interesse superior, nem resolver na soma desses interesses, a sublimação numa unidade da qual, todavia, os interesses particulares são coeficientes”[13]. A fundamentação do enfermeiro teria como finalidade responder ao interesse público, mas interesse esse que não estaria tutelado pela lei uma vez que existira uma divergência entre a finalidade legal e o fim ao qual essa finalidade foi aplicado, nascendo então um ato viciado de desvio de poder.  





[1] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32-40.
[2] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[3] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[4] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[5] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[6] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 36.
[7] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 33.
[8] CARDOSO, Luiz da Silva, Discricionariedade Administrativa e Desvio de Poder, Dissertação de Licenciatura em Direito (ciências jurídicas) na Universidade de Lisboa, 1942-1943, 7ª A noção de desvio de poder, pág.63
[9] CARDOSO, Luiz da Silva, Discricionariedade Administrativa e Desvio de Poder, Dissertação de Licenciatura em Direito (ciências jurídicas) na Universidade de Lisboa, 1942-1943, 12ª O Desvio de Poer no Contencioso Administrativo, pág. 91
[10] Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[11] SOARES, Rogério Guilherme Ehrhard, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, MCMLV (1955), §3º Interesse Público e Limitações Externas da Atividade Administrativa; 1-Interesse na justa composição dos conflitos. Interesse colectivo primário, pág. 100.
[12] SOARES, Rogério Guilherme Ehrhard, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, MCMLV (1955), §3º Interesse Público e Limitações Externas da Atividade Administrativa; 1-Interesse na justa composição dos conflitos. Interesse colectivo primário, pág. 101.
[13] SOARES, Rogério Guilherme Ehrhard, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, MCMLV (1955), §3º Interesse Público e Limitações Externas da Atividade Administrativa; 1-Interesse na justa composição dos conflitos. Interesse colectivo primário, pág. 103.

Catarina Nogueira Toscano, nº 28254.

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