A 18 de agosto de 1937 foi
enterrada Damásia de Oliveira doente do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e que
tivera sido transferida do Hospital de São José (Lisboa) com diagnóstico
provisório de sarampo. Duas semanas depois, apurou-se que a criança sepultada
não tivera sido esta, mas a que se encontrara na cama do lado e com situação
idêntica, Maria Adelaide Martins Ribeiro. Caso este que se tornou num dos mais
mediáticos da imprensa nacional da altura e à posteriori. A 9 de dezembro de
1938, o Supremo Tribunal Administrativo de Lisboa (STA) manifesta-se sobre o mesmo ficando o
acórdão, desse mesmo dia, popularmente conhecido como Caso Maria da Conceição[1].
Maria da
Conceição, enfermeira acusada da troca de crianças, recorreu ao STA pelo despacho
do sr.enfermeiro-mor dos Hospitais Civis
de Lisboa de 16 de dezembro de 1937, publicado no Diário do Governo, 2ª série,
de 27 do mesmo mês e ano, pelo qual fora demitida do cargo de enfermeira
praticante no período post-escolar dos mesmos Hospitais, alegando que no
processo disciplinar que lhe fora movido se haviam praticado irregularidades
graves, sobretudo a de lhe não haver sido facultado todo o processo acusatório,
tendo havido também violação da lei, ofensa de direitos adquiridos da
recorrente e desvio de poder na aplicação da pena, que tivera em vista dar uma
satisfação à opinião pública alarmada com um caso de troca de crianças a que a
imprensa dera grande publicidade e relevo, sendo os factos ocorridos apenas
devido à má organização dos serviços e não constituindo por isso faltas
disciplinares, não podendo de modo algum justificar a aplicação de qualquer
pena e muito menos a de demissão[2].
O Supremo
Tribunal Administrativo concluiu que:
a)
O recurso tinha fundamentação consistente e deveria prosseguir;
b) A troca de crianças não seria da responsabilidade da enfermeira, mas uma deficiência dos
serviços[3], sendo
esta motivada pela falta de organização dos mesmos e na noite da ocorrência
estariam cerca de quarenta doentes nos quartos do pavilhão nº 3 do respetivo
hospital, razão que levara à difícil movimentação e identificação do corpo clínico e dos doentes;
c)
Conseguiu-se apurar que as duas crianças eram da
mesma idade (dois anos) e devido à suas estaturas serem
aproximadas, adicionando a situação acima descrita, o momento em que enfermeira
encontrou a primeira criança no chão, Maria Adelaide, levou-a erroneamente a
colocar a bebé na cama de Damásia de Oliveira originando deste modo a referida
troca;
d) A apelante apenas tivera cometido uma falta
de leve indicação errada do nome da possuidora de uns brincos [4]
e que a mesma não tivera causado qualquer problema para o hospital ou terceiro,
sendo a sanção máxima uma pena bastante
leve [5];
e)
Fora mencionada uma situação similar à descrita
no ponto c), porém com dois doentes em que um deles tinha seis anos e outro
seis meses e a enfermeira responsável apenas tivera recebido quinze dias
de correctivo;
f) Pela celeridade que o enfermeiro-mor enviou uma
nota à comunicação social respondendo a várias questões que estavam a ser
mediatizadas nos mídia: Por despacho do enfermeiro-mor de 16 do corrente
foi imposta a pena de demissão à enfermeira de vela na noite de 16 para 17 de agosto
último ao pavilhão nº3 do Hospital Curry Cabral, por se ter provado, em
processo disciplinar, haver lançado trocadas nos respectivos registos de
temperaturas de duas crianças entradas nessa noite, do que resultou a troca de
documentação e, por isso, da identidade das referidas crianças. [6] Nota esta que informou o castigo aplicado à
responsável como zelou pela imagem, bom nome e reputação dos serviços
hospitalares;
g) E por se concluir que todo o
processo se tivera desenrolado com falta de provas documentais e testemunhais e num espírito de probabilidades e hipóteses.
Os factos
apontados levaram o magistrado do Ministério Público a concluir que a pena
atribuída à enfermeira do respectivo caso tinha como finalidade a satisfação à opinião pública [7]
e consequentemente o desvio de poder estaria comprovado. Por desvio de poder entende-se que os funcionários
administrativos, na prática dos actos para que a lei lhes atribui competência,
devem ter em vista apenas o “fim” que determinou a lei, e os seus actos são
viciados sempre que eles, embora no exercício dum poder legal e com as
formalidades que a lei preceitua, não tiverem realmente em vista, ao praticar o
acto, o fim que a lei visou atribuir-lhes essa competência, e procederam
exclusivamente com um fim diverso[8],
logo estar-se-ia perante um ato viciado e o desvalor jurídico aplicável seria a ilegalidade. Em relação à temática do vício Supremo
Tribunal Administrativo indicou no acórdão de 29 de junho de 1938 que não devem os tribunais do Contencioso
pronunciar a anulação por desvio de poder, fazendo-o consistir em factos que,
embora provados pelas testemunhas inquiridas no processo, não foram alegados na
respectiva petição inicial. E isto porque os reclamantes, digo, reclamados,
aceitando como fundamento da reclamação somente os factos especificados na
petição inicial, apenas a estas, para os inutilizar, ou dar-lhes uma
interpretação diversa, opuseram na contestação os factos sobre que fariam
recair a sua prova[9].
Porém, o vício de desvio de poder poderá cruzar-se com um poder conferido à administração
atribuído por lei, o poder discricionário. A discricionário seria a capacidade tutelada
à administração de a mesma ter uma margem de decisão e de apreciação no caso
concreto. Na sua tipificação a lei não regula todas as matérias, em todos os
cenários e circunstâncias e nessas matérias a administração tem uma margem.
Mas, a administração nunca chega a ser inteiramente discricionária já que estaria vinculada a todo o procedimento que adotou e as decisões tomadas exigem
sempre uma fundamentação.
Comprovou-se
que a decisão tomada pelo enfermeiro-mor teria apoio nas possíveis faltas disciplinares
anteriormente cometidas e em nada se relacionariam com o caso em questão,
mas serviriam de base e sustento para a culminação da pena máxima de
demissão. Todavia, nas declarações que o superior hierárquico fizera indicou a legislação que lhe confere competência para
aplicar pena aos subordinados e lembrar que o processo disciplinar esclarecia suficientemente
as faltas praticadas pela recorrente[10].
Com base nas declarações seria justificável que a decisão tomada se teria suportado na letra da lei. A Administração Pública rege-se estritamente
pela lei e pelo Direito, artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo (CPA)
qualquer decisão terá que ser suportada com base legal e jurídica,uma vez que a administração não é livre. Contudo, verificou-se que a conduta
tomada extravasou os fins da lei, a pena não castigou a trabalhadora pelas faltas disciplinares realizadas e comprovadas (pela mesma) no processo, mas uma acusação que pretendera encontrar um “bode
expiatório” pela troca ocorrida, mantendo intocável a reputação do hospital e dar resposta à dúvida pública que tivera nascido com o caso . Assim, surge o principal objectivo da administração: a
prossecução do interesse público e da protecção dos direitos dos interesses dos
cidadãos, artigo 4º CPA. O Professor Rogério Soares refere que das três funções do Estado a única livre é a
de legislar[11],
mas a utilização dessa “liberdade” apenas poderá ser utilizada na tutela do interesse público[12].
Podemos entender por interesse público um não
interesse abstracto ou um bem que pertença a uma esfera totalmente distinta da
esfera do cidadão:” o interesse público é sem perder a sua qualidade de
interesse superior, nem resolver na soma desses interesses, a sublimação numa
unidade da qual, todavia, os interesses particulares são coeficientes”[13]. A
fundamentação do enfermeiro teria como finalidade responder ao interesse
público, mas interesse esse que não estaria tutelado pela lei uma vez que
existira uma divergência entre a finalidade legal e o fim ao qual essa
finalidade foi aplicado, nascendo então um ato viciado de desvio de poder.
[1] Revista
da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32-40.
[2] Revista
da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[3] Revista
da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[4]
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[5]
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[6]
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 36.
[7]
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 33.
[8]
CARDOSO, Luiz da Silva,
Discricionariedade Administrativa e Desvio de Poder, Dissertação de
Licenciatura em Direito (ciências jurídicas) na Universidade de Lisboa,
1942-1943, 7ª A noção de desvio de poder, pág.63
[9]
CARDOSO, Luiz da Silva,
Discricionariedade Administrativa e Desvio de Poder, Dissertação de
Licenciatura em Direito (ciências jurídicas) na Universidade de Lisboa,
1942-1943, 12ª O Desvio de Poer no Contencioso Administrativo, pág. 91
[10]
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (suplemento), Casos de Jurisprudência Administrativa, Lisboa 1950, pág. 32.
[11]
SOARES, Rogério Guilherme Ehrhard, Interesse
Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, MCMLV (1955), §3º Interesse Público
e Limitações Externas da Atividade Administrativa; 1-Interesse na justa
composição dos conflitos. Interesse colectivo primário, pág. 100.
[12]
SOARES, Rogério Guilherme Ehrhard, Interesse
Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, MCMLV (1955), §3º Interesse Público
e Limitações Externas da Atividade Administrativa; 1-Interesse na justa
composição dos conflitos. Interesse colectivo primário, pág. 101.
[13]
SOARES, Rogério Guilherme Ehrhard, Interesse
Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, MCMLV (1955), §3º Interesse Público
e Limitações Externas da Atividade Administrativa; 1-Interesse na justa
composição dos conflitos. Interesse colectivo primário, pág. 103.
Catarina Nogueira Toscano, nº 28254.
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