O Princípio da
Legalidade enquanto Fundamento e Limite da Actividade Administrativa
Afirma
a professora MARIA LUÍSA DUARTE que "o
princípio da legalidade é a mais fecunda descoberta do Estado Liberal".
De facto, no que diz respeito à actividade administrativa, temos na época pré-liberal,
um controlo administrativo exercido pelo monarca, detentor de poder absoluto,
com a prerrogativa do livre-arbítrio.
O
Estado Liberal veio impor uma limitação do poder público através da lei. A lei
em sentido formal passava, então, a proteger as liberdades e garantias dos
particulares que viam a sua esfera jurídica ser alterada por uma administração agressiva. Surgia assim a
formulação pioneira do princípio da legalidade, como garantia dos direitos do
indivíduo perante uma Administração outrora omnipotente e uma afirmação da
soberania popular.
Com
o surgimento do Estado Social de Direito altera-se o paradigma. A administração
em vez de "agredir" passa a "dar"/"prestar
auxílio", falando-se neste contexto de uma administração prestadora. Esclarece a professora Paula Ribeiro
Costa que "actualmente, quando se
fala do princípio da legalidade e da necessidade de conformidade da actuação da
administração com a ordem jurídica, está-se a querer abranger tanto a lei em
sentido formal, como a lei em sentido material, ou, na expressão de alguns
autores, o bloco de legalidade, a ordem jurídica no seu conjunto".
O
princípio da legalidade enquanto matriz primordial da actividade administrativa
encontra-se, hoje, positivado no art.266º/2 CRP ("Os órgão e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei") e no art.3º/1
CPA ("Os órgãos de Administração Pública devem actuar em obediência à lei
e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em
conformidade com os respectivos fins").
Os
professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos dividem o conteúdo
deste princípio em duas modalidades principais. Se por um lado a Administração
se encontra proibida de contrariar o direito vigente, prevalecendo este em caso
de conflito - preferência de lei; por outro lado, exige-se que a
actuação administrativa tenha fundamento numa norma jurídica - reserva de
lei.
Como
consequência da preferência da lei, temos que, actos da Administração Pública
que contrariem o bloco de legalidade são ilegais e, em regra, inválidos.
Contudo, a modalidade de reserva de lei abre caminho a mais questões.
Sabemos
que a lei será, em regra, geral e abstracta, para além de, por vezes, imune às
imediatas alterações tecnológicas, económicas, sociais e culturais. Assim
sendo, torna-se difícil para um "poder
administrativo que é mais adequadamente exercido no caso concreto",
encontrar fundamento legal para toda a sua actuação. Face à impossibilidade da
lei em responder a todas as situações do quotidiano, passam a existir as
chamadas margens de livre decisão e discricionariedade da Administração
Pública.
Como
definem os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, a
margem livre de decisão consiste num "espaço
de liberdade de actuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco
de legalidade, implicando, portanto, uma parcial autodeterminação
administrativa". Já a professora Paula Ribeiro Costa concebe a
discricionariedade administrativa como a "permissão
dada pela ordem jurídica à administração de escolher entre soluções
juridicamente idênticas e igualmente capazes de resolver o caso concreto".
Levanta-se,
deste modo, a questão acerca da denominada autonomia pública que os
órgãos administrativos ganham nas situações acima enunciadas. Caracterizar-se-á
esta aparente autonomia de decisão pelos mesmos traços da autonomia privada dos
indivíduos comuns no seio do Direito Privado?
Atente-se
que a autonomia privada dos particulares se baseia num sentido negativo do
princípio da legalidade, ou seja, permite-se tudo o que a lei não proíbe.
Entendemos, neste sentido, que a chamada autonomia pública nunca se poderia
desenvolver nestes moldes, baseando-se somente num sentido positivo do
princípio da legalidade, ou seja, admite-se aquilo que a lei prevê. Qualquer outra
interpretação resultaria num retrocesso a um passado de poder administrativo
ilimitado em que as garantias dos particulares eram escassas e os excessos da
Administração incontáveis. Mesmo na sua discricionariedade, continua a
Administração a ter de fundamentar a sua conduta no bloco de legalidade,
podendo, por vezes, optar entre opções legalmente previstas ou, outras vezes,
desenvolver conceitos indeterminados e cláusulas gerais. Por tudo isto,
entendo, não se dever falar de uma verdadeira "autonomia pública".
Afirma o professor Francisco Paes Marques ser "correcto afirmar-se, em geral que a Administração Pública possui
discricionariedade (mas não liberdade), quer quanto às escolhas das suas formas
de actuação (acto ou contrato), quer quanto ao regime a que vai obedecer essa
actuação (Direito Público ou Direito Privado) ".
Concluindo,
reconhecemos a importância do legado liberal do princípio da legalidade, hoje
mais desenvolvido do que nunca, enquanto agente limitador e simultaneamente
fundamentador da actividade de uma Administração Pública que age ao serviço do
interesse colectivo.
Inês Carôla Cavaco
Nº
28184
Bibliografia:
- FREITAS DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Volume I;
2015 (4ª edição), Almedina.
- LUÍSA DUARTE, Maria; A Discricionariedade Administrativa e os
Conceitos Jurídicos Indeterminados (Contributo para uma Análise da Extensão do
Princípio da Legalidade); 1986, Colectânea de Teses da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa.
- PAES MARQUES, Francisco; As Relações Jurídicas Administrativas
Multipolares (Contributo para a sua Compreensão Substantiva); 2009,
Dissertação de Mestrado Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
- REBELO DE SOUSA, Marcelo;
SALGADO DE MATOS, André; Direito
Administrativo Geral: Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais, 2008 (3ª edição), Dom Quixote.
- RIBEIRO COSTA, Paula; Discricionariedade Administrativa e
Princípio da Legalidade; 1992, Dissertação de Mestrado Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa.
- Constituição da República Portuguesa
e Legislação Complementar; 2014, AAFDL.
Sem comentários:
Enviar um comentário