segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O Princípio da Legalidade enquanto Fundamento e Limite da Actividade Administrativa

Afirma a professora MARIA LUÍSA DUARTE que "o princípio da legalidade é a mais fecunda descoberta do Estado Liberal". De facto, no que diz respeito à actividade administrativa, temos na época pré-liberal, um controlo administrativo exercido pelo monarca, detentor de poder absoluto, com a prerrogativa do livre-arbítrio.
O Estado Liberal veio impor uma limitação do poder público através da lei. A lei em sentido formal passava, então, a proteger as liberdades e garantias dos particulares que viam a sua esfera jurídica ser alterada por uma administração agressiva. Surgia assim a formulação pioneira do princípio da legalidade, como garantia dos direitos do indivíduo perante uma Administração outrora omnipotente e uma afirmação da soberania popular.
Com o surgimento do Estado Social de Direito altera-se o paradigma. A administração em vez de "agredir" passa a "dar"/"prestar auxílio", falando-se neste contexto de uma administração prestadora. Esclarece a professora Paula Ribeiro Costa que "actualmente, quando se fala do princípio da legalidade e da necessidade de conformidade da actuação da administração com a ordem jurídica, está-se a querer abranger tanto a lei em sentido formal, como a lei em sentido material, ou, na expressão de alguns autores, o bloco de legalidade, a ordem jurídica no seu conjunto".
O princípio da legalidade enquanto matriz primordial da actividade administrativa encontra-se, hoje, positivado no art.266º/2 CRP ("Os órgão e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei") e no art.3º/1 CPA ("Os órgãos de Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respectivos fins").
Os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos dividem o conteúdo deste princípio em duas modalidades principais. Se por um lado a Administração se encontra proibida de contrariar o direito vigente, prevalecendo este em caso de conflito - preferência de lei; por outro lado, exige-se que a actuação administrativa tenha fundamento numa norma jurídica - reserva de lei.
Como consequência da preferência da lei, temos que, actos da Administração Pública que contrariem o bloco de legalidade são ilegais e, em regra, inválidos. Contudo, a modalidade de reserva de lei abre caminho a mais questões.
Sabemos que a lei será, em regra, geral e abstracta, para além de, por vezes, imune às imediatas alterações tecnológicas, económicas, sociais e culturais. Assim sendo, torna-se difícil para um "poder administrativo que é mais adequadamente exercido no caso concreto", encontrar fundamento legal para toda a sua actuação. Face à impossibilidade da lei em responder a todas as situações do quotidiano, passam a existir as chamadas margens de livre decisão e discricionariedade da Administração Pública.
Como definem os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, a margem livre de decisão consiste num "espaço de liberdade de actuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade, implicando, portanto, uma parcial autodeterminação administrativa". Já a professora Paula Ribeiro Costa concebe a discricionariedade administrativa como a "permissão dada pela ordem jurídica à administração de escolher entre soluções juridicamente idênticas e igualmente capazes de resolver o caso concreto".
Levanta-se, deste modo, a questão acerca da denominada autonomia pública que os órgãos administrativos ganham nas situações acima enunciadas. Caracterizar-se-á esta aparente autonomia de decisão pelos mesmos traços da autonomia privada dos indivíduos comuns no seio do Direito Privado?
Atente-se que a autonomia privada dos particulares se baseia num sentido negativo do princípio da legalidade, ou seja, permite-se tudo o que a lei não proíbe. Entendemos, neste sentido, que a chamada autonomia pública nunca se poderia desenvolver nestes moldes, baseando-se somente num sentido positivo do princípio da legalidade, ou seja, admite-se aquilo que a lei prevê. Qualquer outra interpretação resultaria num retrocesso a um passado de poder administrativo ilimitado em que as garantias dos particulares eram escassas e os excessos da Administração incontáveis. Mesmo na sua discricionariedade, continua a Administração a ter de fundamentar a sua conduta no bloco de legalidade, podendo, por vezes, optar entre opções legalmente previstas ou, outras vezes, desenvolver conceitos indeterminados e cláusulas gerais. Por tudo isto, entendo, não se dever falar de uma verdadeira "autonomia pública". Afirma o professor Francisco Paes Marques ser "correcto afirmar-se, em geral que a Administração Pública possui discricionariedade (mas não liberdade), quer quanto às escolhas das suas formas de actuação (acto ou contrato), quer quanto ao regime a que vai obedecer essa actuação (Direito Público ou Direito Privado) ".
Concluindo, reconhecemos a importância do legado liberal do princípio da legalidade, hoje mais desenvolvido do que nunca, enquanto agente limitador e simultaneamente fundamentador da actividade de uma Administração Pública que age ao serviço do interesse colectivo.
Inês Carôla Cavaco
Nº 28184
Bibliografia:
- FREITAS DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Volume I; 2015 (4ª edição), Almedina.
- LUÍSA DUARTE, Maria; A Discricionariedade Administrativa e os Conceitos Jurídicos Indeterminados (Contributo para uma Análise da Extensão do Princípio da Legalidade); 1986, Colectânea de Teses da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
- PAES MARQUES, Francisco; As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares (Contributo para a sua Compreensão Substantiva); 2009, Dissertação de Mestrado Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
- REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André; Direito Administrativo Geral: Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais, 2008 (3ª edição), Dom Quixote.
- RIBEIRO COSTA, Paula; Discricionariedade Administrativa e Princípio da Legalidade; 1992, Dissertação de Mestrado Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

- Constituição da República Portuguesa e Legislação Complementar; 2014, AAFDL.

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