sábado, 29 de outubro de 2016

Da Crise Existencial do Direito Internacional Público

        Antes de começar o trabalho, peço que me seja permitida uma pequena advertência ao leitor para que se explique a falta de trato metodológico a nível de referências: irão haver algumas posições enunciadas nesta publicação que me são impossíveis de referenciar, id est, opiniões obtidas através de perguntas vis-à-vis a determinados professores, por isso, justifico-me que não é mera boçalidade minha, mas sim a impossibilidade objectiva de eu puder referenciar tais opiniões.

          Define-se o Direito Internacional Público como o conjunto de regras e princípios que regulam a organização e o funcionamento da comunidade internacional, que se traduz essencialmente no conjunto de Estados e de Organizações Internacionais. Curiosamente, Lorenz Von Stein conceptualiza o Direito Administrativo Internacional como o "[...]conjunto de regras jurídicas baseadas parcialmente em fontes internacionais e parcialmente em fontes nacionais que lidem com a actividade administrativa num contexto internacional[...]". Ainda assim nos dias de hoje, opta-se pelo termo global em vez de internacional para designar os novos ramos de Direito que operam num nível supra-estadual, pois há uma imiscuição entre o nível nacional e o nível internacional, por isso julgo que o conceito de Lorenz Von Stein pode ser analogamente usado para o Direito Administrativo Global.

        Lendo ambas as noções percebemos que partilham uma ideia-chave que tem sido um objectivo jurídico da contemporaneidade: uma nova ordem jurídica global. A primeira marca subentendida a ambas as noções é o conceito global governance: ambos os ramos se propõem à administração da comunidade global através de funções de integração; ambos os ramos procuram liderar a comunidade internacional visando valores culturais ocidentais e submeter todos os outros países ao seu domínio de leis. Mas existe uma diferença fundamental entre ambos, sendo ela que um dos ramos é político e o outro é administrativo - um dos ramos tem como elemento principal a programação e o outro a execução. O Direito Internacional Público apenas procura estabelecer fins utópicos e sem a partilha da soberania externa dos Estados com as Organizações Internacionais este nada seria. Ou seja, tal como Direito Constitucional sem o Direito Administrativo nada seria. Por outro lado, é o Direito Administrativo Global que concretiza o Direito Internacional Público através da soberania partilhada com as Organizações Internacionais - e.g. WTO [World Trade Organization], GATS [General Agreement in Trade and Services], et cetera.

        Isto tudo releva para afirmação de um ponto da máxima essencialidade: é possível existir Direito Internacional Público num contexto de comunidade internacional, ou não será o Direito Internacional Público exclusivo ao contexto de sociedade internacional? A questão coloca-se devido ao facto de numa sociedade encontrarmos igualdade e de numa comunidade encontrarmos relações de subordinação e mecanismos sancionatórios. Atendendo a estes critérios afigura-se-me como algo contraditório afirmar que existe Direito Internacional Público num contexto de comunidade, uma vez que esta tem como um dos princípios fundamentais a igualdade da soberania interestadual, e por outro lado seria estranho associarmos o Direito Administrativo Global ao contexto de sociedade. Como tal, as concepções juspublicistas que advogam a existência de Direito Internacional Público num contexto de comunidade fazem-no devido a uma racionalização de que este ramo é hard law, quando no fundo é soft law. Por isto afirmo que Direito Internacional Público é soft law através de exemplos como o caso de Nicarágua v. EUA ou como o caso Filipinas v. China.

        A minha pretensão com o parágrafo anterior foi de enunciação de como não existe propriamente Direito Internacional Público, uma vez que não existe uma relação de igualdade interestadual, mas sim uma relação de hierarquia entre as Potências e os Estados-Satélites e os meros Estados. Estamos perante um eufemismo de Tucídides: um Direito Dos Mais Fortes. Por estas razões, afirmo que não existe em sentido estrito um Direito Internacional Público. O que existe de verdade é um Direito Administrativo Global. Um Direito supranacional onde facto existe opinio juris através de organizações que têm efectivamente poder sobre os estados, e estes estão em situações de sujeição. Estas situações têm sido bastante estudadas devido à actual crise do constitucionalismo, onde a doutrina hoje afirma que os poderes e interesses económicos se sobrepõem aos interesses constitucionais. A minha enumeração anterior de algumas organizações internacionais não foi por acaso uma enumeração onde só constavam organizações de natureza económica, pois o que aponto são algumas das organizações internacionais com mais poder. Estas organizações, ou como explica Krisch, estes regulators criam os standards globais que depois vão ser implementados pelas administrações nacionais. É através do poder económico que realmente se cria uma opinio juris  entre o Estado e a Organização Internacional, e que este se deixa administrar por ela.

        Mas o grande dos males não é o poder económico, mas sim a faceta de auto-regulação do Direito Administrativo Global. Estas organizações na sua generalidade são compostas por oficiais nacionais dos respectivos países que a integram, e como tal é provável a promiscuidade entre os interesses pessoais e os interesses nacionais do oficial, pois é muito mais fácil corromper um único oficial do que uma assembleia parlamentar. Isto permite uma maior eficiência do Direito através de oficiais que tanto fazem parte da organização internacional como do Estado, e assim concretizando mais celeremente os objectivos da comunidade internacional, id est, dos regulators. Por outras palavras, pode-se ter como exemplo casos de particulares com titularidade de um órgão administrativo (ministros, oficiais entre outros cargos de poder estadual) que passem a trabalhar numa organização internacional depois do termo do seu mandato - o Direito Administrativo Global cria novos limites à desconcentração e à descentralização pelo que permite uma promiscuidade do sujeito entre a entidade pública nacional e a entidade pública internacional. Apesar da vinculação do Estados a um Direito Supranacional ser mais elevada no Direito Administrativo Global através da imiscuição entre o que é nacional e o que é internacional, também se cria novos problemas como os que foram enunciados neste parágrafo.

       O problema do Direito Internacional Público é a sua visão utópica e sempre ligada aos Direitos Humanos, à dignidade da pessoa humana  e aos direitos fundamentais na sua generalidade; enquanto que o Direito Administrativo Global se foca nos actos jurídicos estritos com real importância como na intervenção em crises, quer económicas como ambientais. O Direito Internacional Público tem um pendor axiomático e por isso procura constantemente justificar a sua existência como ordem jurídica. Já o Direito Administrativo Global, apesar de pouco conhecido, tem muito mais eficácia normativa devido ao facto de os estados preocuparem-se mais com factores económicos do que com relativismos culturais e humanitários. Para além disso, é mais transparente, pois percebemos que tais organizações são compostas por diferentes interesses que podem ser discutidos e decididos, ao contrário que no Direito Internacional Público esta transparência não existe pois a relação entre Estados não é, por norma, publicizada.

         Nada obstante, esta é a visão de quem segue a escola do realismo jurídico escandinavo e não de um positivista inclusivista ou de um jusnaturalista, por isso, a mim me parece que o Direito Administrativo Global tem maior relevância do que o Direito Internacional Público pela sua efectividade graças ao pendor económico: e é a efectividade, como explica Kelsen, que permite a existência de juridicidade. Na próxima publicação, atenderei ao que é o Direito Administrativo Global stricto sensu.

The Concept of ‘Law’ in Global Administrative Law, Benedict Kingsbury
Shrimps, Turtles and Procedure: Global Standards for National Administrations, Sabino Cassese
Introduction: Global Governance and Global Administrative Law in the International Legal Order,
Nico Krisch e Benedict Kingsbury
Lições de Direito Constitucional, Vol I, pág. 56 e 97, José Melo de Alexandrino

Pedro Seabra Caeiro

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