Quando a Administração atua como se
de um sujeito privado se tratasse, as relações jurídicas que as entidades
administrativas estabelecem regem-se pelo ramo de Direito (privado) adequado à
natureza dessas relações, então por normas de Direito Administrativo.
Nota de enquadramento: Distinção entre direito público e direito privado
O
direito público distingue-se do direito privado desde logo pelo facto de os
seus fundamentos e funções serem essencialmente distintos: enquanto o
direito privado, partindo da liberdade contratual (autonomia da vontade,
liberdade de estipulação ou autonomia privada – art. 405º do Código Civil) do
particular se ocupa da regulação dos negócios jurídicos e da resolução de
conflitos de interesses entre entes privados, o direito público, pelo
menos na sua parte mais significativa tem por objeto o Estado como ente de
autoridade. Este facto não exclui que, excecionalmente, o Estado também se
possa servir do direito privado.
Não
obstante de estes dois ramos do direito serem profundamente antagónicos, Freitas
do Amaral reforça que, no plano da técnica jurídica, há naturalmente relações
recíprocas entre eles: “o Direito Administrativo começou por ir buscar determinadas
noções ao Direito Civil, precisamente porque o Direito Civil tem sido
repositório comum da tradição jurídica europeia e também porque há princípios
gerais de direito incluídos em diplomas de direito privado”.
Para Freitas do Amaral distingue-se administração pública e
administração privada pelo objeto sobre que incidem, pelo fim que visam
prosseguir e pelos meios que utilizam.
No
plano prático, a dissemelhança entre direito público e direito privado é particularmente
relevante pelas seguintes razões:
a)
Determinação do
âmbito de aplicação do Código de Procedimento Administrativo, o qual apenas se
aplica à atividade administrativa de direito público dos órgãos da
Administração;
b)
Determinação da
jurisdição competente, assim presume-se que os litígios de direito público são
da competência dos tribunais administrativos, ao passo que os litígios de
direito privado são da competência dos tribunais comuns;
c)
Determinação da
responsabilidade do Estado, a qual se norteia por normas diferentes, consoante
a conduta danosa tenha sido ou não provocada por um órgão da Administração no
exercício de uma função administrativa, aplicando-se assim o direito público ou
o direito privado.
d)
Averiguação da
execução administrativa, a qual, em princípio, só é admitida na execução de
atos de direito público (atos administrativos).
As tentativas de delimitação do
direito público face ao direito privado são já antigas e desde sempre esta
distinção animou a querela doutrinária com acesas controvérsias. As grandes orientações
da doutrina agrupam-se em três teorias a teoria dos sujeitos, a teoria dos
interesses e a teoria da relação de subordinação.
A teoria dos sujeitos partiu da ideia de que o direito público é aquele que
se aplica aos entes públicos, enquanto o direito privado é aquele que se aplica
aos entes privados. Este critério não é viável, pois a Administração Pública
também atua segundo o direito privado; «estão também em causa sujeitos de
direito privado, quer aqueles que exerçam a função administrativa, quer aqueles
que, não o fazendo, com ela se interseccionam na sua atuação» Marcelo Rebelo de
Sousa e André Salgado de Matos
Relativamente à tese dos interesses, fazem parte do direito
público as normas que visam salvaguardar interesses públicos, enquanto do
direito privado fazem parte as normas que visam salvaguardar os interesses
privados. Esta teoria é falível porque
há normas que protegem simultaneamente interesses públicos e interesses
privados, sendo certo que também muitas vezes esses interesses se orientam em
sentidos opostos.
Marcello Caetano afirma que «é do reconhecimento da
primazia em certos casos dos interesses públicos sobre os privados que resulta
depois a necessidade de atribuir uma posição de superioridade nas relações
jurídicas às pessoas coletivas instituídas para prosseguir o interesse geral».
Conclui ainda: qualquer que seja o critério seguido, o Direito Administrativo é
Direito Público.
Para a teoria da relação de subordinação, fundada
por HANS WOLF, entre nós mais conhecida por critério dos poderes de autoridade
(FREITAS DO AMARAL), o critério decisivo para a delimitação do direito público
face ao direito privado deve incidir nas relações entre as partes envolvidas.
a) Os entes
públicos estão numa relação de superioridade em relação aos entes privados, superioridade
que lhes advém dos seus poderes de autoridade. As relações que se
estabelecem entre entes públicos e entres privados são, pois, relações
desniveladas, em que o ente público se sobrepõe e subjuga o entre privado (relações
de subordinação).
b) Diferentemente,
o direito privado, que regula relações entre privados, os entes estão entre si
em pé de igualdade, dando origem a relações de equilíbrio ou
equivalência.
Segundo
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos ao caracterizar o direito administrativo
como um direito público, consideraram o critério da sua posição também não permite
explicar cabalmente a natureza pública do direito administrativo: «porque as
normas de direito administrativo que tenham cariz organizativo e funcional não
envolvem o exercício de poderes de autoridade sobre particulares e ainda porque
nem sempre as entidades administrativas se relacionam com terceiros, ao abrigo
do direito administrativo, em posição de ius imperii.»
Na
prática, a jurisprudência, tantas vezes apelidada de instável, não decide
geralmente segundo esta ou aquela teoria, mas procura enquadrar os casos
controversos sob diferentes pontos de vista. Uma vez encontrada a lei aplicável
ao caso concreto, basta referir que ela se integra no direito público para
podermos concluir que estamos perante um litígio de direito público. Só
quando, excecionalmente, subsistam dúvidas sobre a natureza jurídico-pública ou
jurídico-privada da norma aplicável, teremos de recorrer às referidas
teorias, embora na maior para dos casos estas também não nos permitam chegar a
uma conclusão definitiva.
2. Aplicação de normas e princípios de direito privado à atividade administrativa
A Administração Pública mantém com
o direito privado dois tipos de relações: por um lado, pode prosseguir certas
funções administrativas com base no direito privado; por outro lado, ao aplicar
o direito administrativo, pode também recorrer a normas do direito privado para
integração e preenchimento de lacunas. No primeiro caso, a atividade da
Administração apresenta-se no plano do direito privado; diferentemente, no
segundo caso, permanece no plano do direito público, embora aplique direito
privado ou figuras jurídicas do direito privado.
A aplicação de normas e princípios
de direito privado à atividade administrativa pode ser fundamentada de dois
modos diferentes: por um lado, certos princípios gerais de direito previstos e
regulados no Código Civil são de aplicação direta, em geral, a todos os
domínios do direito – por isso são chamados princípios gerais de direito. Neste
caso, a referência que a lei administrativa faz ao Código Civil serve apenas para
esclarecer o conteúdo desses princípios gerais de direito. Por natureza, esses
princípios aplicam-se também ao direito público. Este será certamente o caso do
princípio da boa-fé (que também vem previsto no CPA). Por outro lado, certas
normas de direito privado aplicam-se analogicamente ao direito administrativo.
Para que esta aplicação seja possível, devem verificar-se três requisitos:
a. Que não
exista uma norma correspondente no direito administrativo
b. Que a
lacuna não possa ser colmatada pelo direito administrativo
c.
Que se verifiquem os pressupostos da analogia.
Mário Aroso de Almeida vai ao cerne
da questão e refere que as “entidades que integram a Administração Pública têm
capacidade de gozo do direito privado, dentro dos limites que decorrem do
princípio da especialidade”. Assim, essas entidades podem ter património
privado e dele dispor e podem, ainda, “utilizar os instrumentos jurídicos que o
Direito privado coloca à sua disposição, desde que isso não seja incompatível
com a sua natureza” nem se desvie do seu fim (a prossecução das necessidades
públicas) no quadro das suas atribuições. Estamos perante aquilo que a nossa
ordem jurídica designa de atuações de gestão
privada da Administração Pública.
A doutrina alemã fala, a este
propósito, na aplicação de um Direito privado administrativo, para significar
que, nesse domínio, a aplicação do direito privado será permeada pela aplicação
de principio gerais de Direito Administrativo e pela afirmação da vinculação da
Administração Pública aos direitos fundamentais.
Frequentemente, sucede que uma
entidade pública, designadamente o Estado, confia a prossecução de atribuições
públicas a uma entidade privada. Consequentemente, o particular passa a estar
investido no exercício de funções públicas, designadamente através da concessão
de poderes de administração de bens ou serviços públicos, ele passa a exercer a
função administrativa, passando a ser destinatário de normas de Direito
Administrativo que lhe são aplicáveis. à Contratos
de Concessão, isto é, passam a ser titulares de delegações ou concessões de
funções administrativas
A doutrina tem falado, a este
propósito, de uma mudança de paradigma, que se concretiza numa fuga para o
direito privado (Maria João Estorninho -tese; Rogério Ehrhardt Soares e Paulo
Otero), indo mesmo ao ponto de questionar:
·
«se é ilimitada a liberdade de conformação do
legislador nesta matéria, podendo mesmo eliminar de todo as modalidades de
exercício da função administrativa segundo uma disciplina jurídica de Direito
Administrativo, em favor da utilização de formas jurídicas de organização e de
atuações regidas pelo direito privado
·
ou, pelo contrário, existe uma reserva
constitucional de Direito Administrativo, que imponha a existência de
matérias inseridas na função administrativa que têm de ser objeto da disciplina
jurídica pelo Direito Administrativo.» Mário Aroso de Almeida
Mário Aroso de Almeida afirma que,
nos termos do artigo 2º/1 do CPA a Administração Pública está vinculada ao
respeito pelos princípios gerais da
atividade administrativa, mesmo no âmbito das suas atuações de gestão
privada; e que, pelo contrário, entidades de direito privado que incorporam a
Administração Pública não estão subjugadas ao regime em matéria orgânica da
Parte II do CPA e só estão sujeitas ao regime das restantes partes do CPA
(respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade
administrativa) na medida em que atuem no exercício de poderes públicos ou ao abrigo de normas de
Direito Administrativo.
Por outro lado, o Direito
Administrativo tem respondido ao fenómeno da dita fuga para o direito privado
através de uma política de «permeabilização» do Direito privado pelo Direito
Administrativo (Maria João Estorninho), no que às entidades privadas que
exercem a função administrativa diz respeito, que se traduz na criação de
normas específicas de Direito Administrativo dirigidas a disciplinar a conduta dessas
entidades enquanto tal se justifica em domínios específicos e, em termos
gerais, na extensão a essas entidades da aplicabilidade de institutos de
Direito Administrativo de âmbito geral.
CONCLUSÃO
Se as entidades privadas atuam em
conformidade com as normas de Direito Administrativo que lhes impões requisitos
formais de cuja observância depende o reconhecimento pelo Estado dos atos que
praticam, elas estão a praticar, ao abrigo de normas de Direito Administrativo,
atos que devem ser qualificados como atos administrativos, como se fossem
praticados no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.
Em aulas teóricas, ouvimos o Doutor
Vasco Pereira da Silva afirmar que «A administração pública assumiu uma dimensão
privada e de alguma maneira isto é um fenómeno, de resto estudado em Portugal,
a Professora Maria João Estorninho tem a sua tese de doutoramento com o título
emblemático: “A fuga para o direito privado”, houve da parte das organizações
administrativas esta ideia de que seria mais eficaz e adequado em razão da
natureza da atividade assumirem uma entidade privada mas estas entidades não
são privadas elas continuam a ser públicas porque os fins que procedem são
públicos, porque os dinheiros que utilizam são públicos, porque o controlo não
pode deixar de ser um controlo público, e portanto, temos uma nova modalidade
da administração que tem uma forma privada mas que é regulada pelo direito
administrativo, isso é uma transformação da administração pública dos dias de
hoje que já vinha desde os anos 30 e 40 mas só assumiu esta importância a
partir dos anos 70. É assim uma transformação do modelo de administração
pública, é uma transformação relevante»
No âmbito deste tipo de atuações,
as entidades estão vinculadas, não apenas à observância das regras
procedimentais devidas, como das demais regras e princípios gerais aplicáveis à
atividade administrativa. A título de exemplo, os atos que praticam devem, por
isso, respeitar princípios como a igualdade ou imparcialidade, e, sendo
equiparados a atos administrativos, estão sujeitos ao respetivo regime
substantivo, em domínios como o da invalidade, da revogação e da impugnação,
tanto administrativa, como perante os tribunais administrativos.
BIBLIOGRAFIA:
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MÁRIO AROSO DE, Teoria Geral do Direito
Administrativo – O Novo Regime do Código do Procedimento Administrativo,
2016 (3ªedição), Almedina.
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JOÃO; Direito Administrativo 1998
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EHRHARDT
SOARES, ROGÉRIO: Direito Administrativo,
Coimbra, 1978.
FREITAS DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito
Administrativo - Volume
I; 2015 (4ª edição),
Almedina.
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André; Direito
Administrativo Geral: Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais, 2008
(3ª edição), Dom Quixote.
Raquel Lourenço, nº28 132
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