segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Direito Administrativo como parte do direito público a sua delimitação do direito privado

Nem sempre as relações jurídicas que envolvem a Administração Pública são reguladas pelo Direito Administrativo. O Direito Administrativo só rege a atividade que a Administração Pública desenvolve no exercício da função administrativa.

Quando a Administração atua como se de um sujeito privado se tratasse, as relações jurídicas que as entidades administrativas estabelecem regem-se pelo ramo de Direito (privado) adequado à natureza dessas relações, então por normas de Direito Administrativo.
  1. Nota de enquadramento: Distinção entre direito público e direito privado

O direito público distingue-se do direito privado desde logo pelo facto de os seus fundamentos e funções serem essencialmente distintos: enquanto o direito privado, partindo da liberdade contratual (autonomia da vontade, liberdade de estipulação ou autonomia privada – art. 405º do Código Civil) do particular se ocupa da regulação dos negócios jurídicos e da resolução de conflitos de interesses entre entes privados, o direito público, pelo menos na sua parte mais significativa tem por objeto o Estado como ente de autoridade. Este facto não exclui que, excecionalmente, o Estado também se possa servir do direito privado.
Não obstante de estes dois ramos do direito serem profundamente antagónicos, Freitas do Amaral reforça que, no plano da técnica jurídica, há naturalmente relações recíprocas entre eles: “o Direito Administrativo começou por ir buscar determinadas noções ao Direito Civil, precisamente porque o Direito Civil tem sido repositório comum da tradição jurídica europeia e também porque há princípios gerais de direito incluídos em diplomas de direito privado”.
Para Freitas do Amaral distingue-se administração pública e administração privada pelo objeto sobre que incidem, pelo fim que visam prosseguir e pelos meios que utilizam.
No plano prático, a dissemelhança entre direito público e direito privado é particularmente relevante pelas seguintes razões:
a)       Determinação do âmbito de aplicação do Código de Procedimento Administrativo, o qual apenas se aplica à atividade administrativa de direito público dos órgãos da Administração;
b)       Determinação da jurisdição competente, assim presume-se que os litígios de direito público são da competência dos tribunais administrativos, ao passo que os litígios de direito privado são da competência dos tribunais comuns;
c)       Determinação da responsabilidade do Estado, a qual se norteia por normas diferentes, consoante a conduta danosa tenha sido ou não provocada por um órgão da Administração no exercício de uma função administrativa, aplicando-se assim o direito público ou o direito privado.
d)       Averiguação da execução administrativa, a qual, em princípio, só é admitida na execução de atos de direito público (atos administrativos).
As tentativas de delimitação do direito público face ao direito privado são já antigas e desde sempre esta distinção animou a querela doutrinária com acesas controvérsias. As grandes orientações da doutrina agrupam-se em três teorias a teoria dos sujeitos, a teoria dos interesses e a teoria da relação de subordinação.
A teoria dos sujeitos partiu da ideia de que o direito público é aquele que se aplica aos entes públicos, enquanto o direito privado é aquele que se aplica aos entes privados. Este critério não é viável, pois a Administração Pública também atua segundo o direito privado; «estão também em causa sujeitos de direito privado, quer aqueles que exerçam a função administrativa, quer aqueles que, não o fazendo, com ela se interseccionam na sua atuação» Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos
Relativamente à tese dos interesses, fazem parte do direito público as normas que visam salvaguardar interesses públicos, enquanto do direito privado fazem parte as normas que visam salvaguardar os interesses privados.  Esta teoria é falível porque há normas que protegem simultaneamente interesses públicos e interesses privados, sendo certo que também muitas vezes esses interesses se orientam em sentidos opostos.
Marcello Caetano afirma que «é do reconhecimento da primazia em certos casos dos interesses públicos sobre os privados que resulta depois a necessidade de atribuir uma posição de superioridade nas relações jurídicas às pessoas coletivas instituídas para prosseguir o interesse geral». Conclui ainda: qualquer que seja o critério seguido, o Direito Administrativo é Direito Público.
Para a teoria da relação de subordinação, fundada por HANS WOLF, entre nós mais conhecida por critério dos poderes de autoridade (FREITAS DO AMARAL), o critério decisivo para a delimitação do direito público face ao direito privado deve incidir nas relações entre as partes envolvidas.
a)       Os entes públicos estão numa relação de superioridade em relação aos entes privados, superioridade que lhes advém dos seus poderes de autoridade. As relações que se estabelecem entre entes públicos e entres privados são, pois, relações desniveladas, em que o ente público se sobrepõe e subjuga o entre privado (relações de subordinação).
b)       Diferentemente, o direito privado, que regula relações entre privados, os entes estão entre si em pé de igualdade, dando origem a relações de equilíbrio ou equivalência.
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos ao caracterizar o direito administrativo como um direito público, consideraram o critério da sua posição também não permite explicar cabalmente a natureza pública do direito administrativo: «porque as normas de direito administrativo que tenham cariz organizativo e funcional não envolvem o exercício de poderes de autoridade sobre particulares e ainda porque nem sempre as entidades administrativas se relacionam com terceiros, ao abrigo do direito administrativo, em posição de ius imperii
Na prática, a jurisprudência, tantas vezes apelidada de instável, não decide geralmente segundo esta ou aquela teoria, mas procura enquadrar os casos controversos sob diferentes pontos de vista. Uma vez encontrada a lei aplicável ao caso concreto, basta referir que ela se integra no direito público para podermos concluir que estamos perante um litígio de direito público. Só quando, excecionalmente, subsistam dúvidas sobre a natureza jurídico-pública ou jurídico-privada da norma aplicável, teremos de recorrer às referidas teorias, embora na maior para dos casos estas também não nos permitam chegar a uma conclusão definitiva.

         2. Aplicação de normas e princípios de direito privado à atividade administrativa

A Administração Pública mantém com o direito privado dois tipos de relações: por um lado, pode prosseguir certas funções administrativas com base no direito privado; por outro lado, ao aplicar o direito administrativo, pode também recorrer a normas do direito privado para integração e preenchimento de lacunas. No primeiro caso, a atividade da Administração apresenta-se no plano do direito privado; diferentemente, no segundo caso, permanece no plano do direito público, embora aplique direito privado ou figuras jurídicas do direito privado.
A aplicação de normas e princípios de direito privado à atividade administrativa pode ser fundamentada de dois modos diferentes: por um lado, certos princípios gerais de direito previstos e regulados no Código Civil são de aplicação direta, em geral, a todos os domínios do direito – por isso são chamados princípios gerais de direito. Neste caso, a referência que a lei administrativa faz ao Código Civil serve apenas para esclarecer o conteúdo desses princípios gerais de direito. Por natureza, esses princípios aplicam-se também ao direito público. Este será certamente o caso do princípio da boa-fé (que também vem previsto no CPA). Por outro lado, certas normas de direito privado aplicam-se analogicamente ao direito administrativo. Para que esta aplicação seja possível, devem verificar-se três requisitos:
a.       Que não exista uma norma correspondente no direito administrativo
b.       Que a lacuna não possa ser colmatada pelo direito administrativo
c.        Que se verifiquem os pressupostos da analogia.
Mário Aroso de Almeida vai ao cerne da questão e refere que as “entidades que integram a Administração Pública têm capacidade de gozo do direito privado, dentro dos limites que decorrem do princípio da especialidade”. Assim, essas entidades podem ter património privado e dele dispor e podem, ainda, “utilizar os instrumentos jurídicos que o Direito privado coloca à sua disposição, desde que isso não seja incompatível com a sua natureza” nem se desvie do seu fim (a prossecução das necessidades públicas) no quadro das suas atribuições. Estamos perante aquilo que a nossa ordem jurídica designa de atuações de gestão privada da Administração Pública.
A doutrina alemã fala, a este propósito, na aplicação de um Direito privado administrativo, para significar que, nesse domínio, a aplicação do direito privado será permeada pela aplicação de principio gerais de Direito Administrativo e pela afirmação da vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais.
Frequentemente, sucede que uma entidade pública, designadamente o Estado, confia a prossecução de atribuições públicas a uma entidade privada. Consequentemente, o particular passa a estar investido no exercício de funções públicas, designadamente através da concessão de poderes de administração de bens ou serviços públicos, ele passa a exercer a função administrativa, passando a ser destinatário de normas de Direito Administrativo que lhe são aplicáveis. à Contratos de Concessão, isto é, passam a ser titulares de delegações ou concessões de funções administrativas
A doutrina tem falado, a este propósito, de uma mudança de paradigma, que se concretiza numa fuga para o direito privado (Maria João Estorninho -tese; Rogério Ehrhardt Soares e Paulo Otero), indo mesmo ao ponto de questionar:
·         «se é ilimitada a liberdade de conformação do legislador nesta matéria, podendo mesmo eliminar de todo as modalidades de exercício da função administrativa segundo uma disciplina jurídica de Direito Administrativo, em favor da utilização de formas jurídicas de organização e de atuações regidas pelo direito privado
·         ou, pelo contrário, existe uma reserva constitucional de Direito Administrativo, que imponha a existência de matérias inseridas na função administrativa que têm de ser objeto da disciplina jurídica pelo Direito Administrativo.» Mário Aroso de Almeida
Mário Aroso de Almeida afirma que, nos termos do artigo 2º/1 do CPA a Administração Pública está vinculada ao respeito pelos princípios gerais da atividade administrativa, mesmo no âmbito das suas atuações de gestão privada; e que, pelo contrário, entidades de direito privado que incorporam a Administração Pública não estão subjugadas ao regime em matéria orgânica da Parte II do CPA e só estão sujeitas ao regime das restantes partes do CPA (respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade administrativa) na medida em que atuem no exercício  de poderes públicos ou ao abrigo de normas de Direito Administrativo.
Por outro lado, o Direito Administrativo tem respondido ao fenómeno da dita fuga para o direito privado através de uma política de «permeabilização» do Direito privado pelo Direito Administrativo (Maria João Estorninho), no que às entidades privadas que exercem a função administrativa diz respeito, que se traduz na criação de normas específicas de Direito Administrativo dirigidas a disciplinar a conduta dessas entidades enquanto tal se justifica em domínios específicos e, em termos gerais, na extensão a essas entidades da aplicabilidade de institutos de Direito Administrativo de âmbito geral.

CONCLUSÃO

Se as entidades privadas atuam em conformidade com as normas de Direito Administrativo que lhes impões requisitos formais de cuja observância depende o reconhecimento pelo Estado dos atos que praticam, elas estão a praticar, ao abrigo de normas de Direito Administrativo, atos que devem ser qualificados como atos administrativos, como se fossem praticados no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.
Em aulas teóricas, ouvimos o Doutor Vasco Pereira da Silva afirmar que «A administração pública assumiu uma dimensão privada e de alguma maneira isto é um fenómeno, de resto estudado em Portugal, a Professora Maria João Estorninho tem a sua tese de doutoramento com o título emblemático: “A fuga para o direito privado”, houve da parte das organizações administrativas esta ideia de que seria mais eficaz e adequado em razão da natureza da atividade assumirem uma entidade privada mas estas entidades não são privadas elas continuam a ser públicas porque os fins que procedem são públicos, porque os dinheiros que utilizam são públicos, porque o controlo não pode deixar de ser um controlo público, e portanto, temos uma nova modalidade da administração que tem uma forma privada mas que é regulada pelo direito administrativo, isso é uma transformação da administração pública dos dias de hoje que já vinha desde os anos 30 e 40 mas só assumiu esta importância a partir dos anos 70. É assim uma transformação do modelo de administração pública, é uma transformação relevante»
No âmbito deste tipo de atuações, as entidades estão vinculadas, não apenas à observância das regras procedimentais devidas, como das demais regras e princípios gerais aplicáveis à atividade administrativa. A título de exemplo, os atos que praticam devem, por isso, respeitar princípios como a igualdade ou imparcialidade, e, sendo equiparados a atos administrativos, estão sujeitos ao respetivo regime substantivo, em domínios como o da invalidade, da revogação e da impugnação, tanto administrativa, como perante os tribunais administrativos.

BIBLIOGRAFIA:

ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Teoria Geral do Direito Administrativo – O Novo Regime do Código do Procedimento Administrativo, 2016 (3ªedição), Almedina.
CAETANO, MARCELLO; Manual de Direito Administrativo, Volume I; 1973 (10ºedição), Lisboa
CAUPERS, JOÃO; Direito Administrativo 1998 (3ªedição), Editorial Notícias.
EHRHARDT SOARES, ROGÉRIO: Direito Administrativo, Coimbra, 1978.
FREITAS DO AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Volume I; 2015 (4ª edição), Almedina.
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André; Direito Administrativo Geral: Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais, 2008 (3ª edição), Dom Quixote.

Raquel Lourenço, nº28 132

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