Pode ler-se no artigo 266º da Constituição da República
Portuguesa: “A Administração Pública visa
a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos”. A dupla “direitos e interesses” surge
também noutros preceitos da CRP (v.g. 268º, 271º…). Como a doutrina tem
reconhecido, trata-se de uma importação de Itália. Veja-se o artigo 113º da
Constituição italiana: “Relativamente a
todos os actos da Administração pública, é sempre admitida a protecção jurisdicional
dos direitos e dos interesses legítimos perante os órgãos de jurisdição
ordinária ou administrativa”.
Antes de avançarmos no significado dessa bipartição, cabe
fazer uma nota histórica relativa ao contencioso administrativo italiano.
Em 1889 é instaurado um sistema de dualidade de jurisdições
(ordinária e administrativa), sendo que a determinação do juiz competente
dependia de o litígio entre o particular e a Administração ter por objeto um
direito subjetivo ou um interesse legítimo. Os direitos subjetivos seriam
conhecidos pelo juiz comum, os interesses legítimos pelo juiz administrativo
(de 1865 até aí era a própria Administração que apreciava a legalidade dos atos
administrativos). Como diz o Professor Pereira da Silva: “O critério de distinção entre estas duas figuras nasceu, pois, como
critério de distribuição de competências entre a jurisdição ordinária e a
jurisdição administrativa e, só depois, se veio a tornar, também, uma categoria
conceptual”. Atualmente, e cada vez mais, a tendência é a da criação de uma
jurisdição exclusiva, devendo o juiz administrativo conhecer tanto direitos
subjetivos como interesses legítimos.
Passemos agora à exposição do significado da divisão das
posições jurídicas substantivas dos particulares em direitos e interesses
legítimos no nosso país, tal como tem sido defendida pelo Professor Freitas do
Amaral, embora tenhamos também em vista a generalidade da doutrina que advoga
essa bipartição.
Para o Professor Freitas do Amaral tanto numa figura como
noutra “existe um interesse privado
reconhecido e protegido pela lei”. O direito subjetivo seria “um ou mais poderes legais que permitem
manter ou obter a satisfação plena de um interesse privado”, inclusive “em caso de violação ou não cumprimento”,
ou seja, merece uma proteção imediata, de primeira linha. Relativamente aos
interesses legítimos, seriam estes constituídos por “um poder legal de garantir que o eventual sacrifício de um interesse
privado, por razões de interesse público, seja sempre decidido com total respeito
pela legalidade administrativa vigente”, havendo apenas uma proteção
mediata, de segunda linha e que não assegura a satisfação do interesse privado (pois
o interesse protegido diretamente seria o público).
Exemplificando, o Professor Freitas do Amaral refere que,
se ao fim de vários anos, é atribuída uma diuturnidade a um funcionário, o
direito que este tem à mesma permite-lhe exigi-la do Estado e, caso este não
cumpra a obrigação, recorrer aos meios legalmente adequados para obter a realização
do seu direito, ou, dizendo o mesmo, o funcionário, no fim de contas, verá
sempre o seu interesse plenamente satisfeito; a propósito do interesse legítimo
é referido um concurso para o lugar de professor catedrático, sendo que os
candidatos que preenchessem as condições legais teriam um interesse legítimo na
legalidade do processo, pelo que, a ser escolhido um candidato que não
preenchesse as ditas condições, os restantes poderiam reagir, impugnando a
decisão ilegal da Administração. Isto não significaria, contudo, que esses
candidatos cumpridores tivessem direito ao cargo. Apenas lhe é dada a hipótese
de “remover um obstáculo ilegal à
satisfação do seu interesse”. De resto, a escolha continua a caber à
Administração e o interesse do particular não estaria assegurado.
Segundo nos parece, esta tese é criticável, tal como, em
geral, a distinção direito subjetivo/interesse legítimo.
Em primeiro lugar, note-se que a limitação (ou sacrifício)
do interesse de um particular em nome do interesse (previsto na lei) de
terceiros não implica a transformação de um direito em interesse legítimo.
Vejamos o direito de propriedade (artigo 1305º do Código Civil), o paradigma do
direito absoluto, através do qual o proprietário goza de modo pleno e exclusivo
da coisa, sendo o seu direito oponível erga
omnes. Apesar de tudo isso, os interesses de outros sujeitos podem implicar
uma limitação da posição do proprietário: assim, por exemplo, são previstas as
servidões legais de passagem (artigos 1550º e seguintes), através das quais um
particular, titular de um direito potestativo, limita o gozo que outro tem da
sua (própria) propriedade. Outra hipótese: a propriedade sobre bens de especial
interesse cultural, classificados como tal pela administração, pode implicar uma situação de
sujeição, através da qual o proprietário deve permitir o acesso público a esses
bens (veja-se o artigo 21º da Lei nº 197/2001 de 8 de Setembro). Tentando
retirar algo destas hipóteses, diríamos que em ambos se dá uma limitação do
interesse do particular em proveito do interesse de terceiros; contudo, no
segundo há intervenção da Administração, ao invés do primeiro. Identifica-se,
no primeiro exemplo um direito subjetivo, já no segundo vê-se apenas um
interesse legítimo. Será isto correto? A simples presença da Administração implicaria,
então, um desdobramento da posição do particular, que, sobre o mesmo bem, ora
tem um direito subjetivo, ora tem um interesse legítimo, conforme prive com
particulares ou com a Administração. À luz da Constituição, este tipo de
construções parece de evitar: o direito de propriedade privada, previsto no artigo
62º, serve o particular face a terceiros e face à Administração, tanto mais
que, como diz Sabino Cassese, “as
constituições modernas são dirigidas, antes de qualquer outra coisa, à defesa
dos cidadãos no confronto com o poder público”. Assim, a limitação dos
direitos (em ambas as situações referidas) resulta da lei, não da presença da
Administração, tornando-se incoerente a transformação do direito em interesse
legítimo.
Em segundo lugar, não se deve confundir a tutela de uma
situação jurídica com o seu conteúdo. Retomemos o segundo exemplo do Professor
Freitas do Amaral: o candidato ao lugar de professor catedrático que cumprira
os requisitos legais teria apenas um interesse legítimo, na medida em que, não
podendo assegurar o seu interesse ao cargo, ser-lhe-ia possível exigir a
legalidade da decisão que o afete. Encontramos uma situação, de certo modo
simétrica, no direito de preferência (artigo 414º e seguintes do Código Civil):
se o preferente oferece o mesmo que os outros eventuais proponentes, o obrigado
deve escolher contratar com ele. Relativamente ao concurso para professor,
diríamos: se um candidato não oferece o mesmo que os outros (i.e. não preenche
os requisitos que estes cumprem), a Administração não deve escolhê-lo. Haverá
aqui um interesse legítimo e ali um direito subjetivo? Não, em ambos os casos
temos direitos. A insuficiência da tutela (apenas um direito à legalidade) para
garantir o interesse é ilusória já que nunca se poderia assegurar o que uma
situação não tem por conteúdo. Assim, caso o obrigado desistisse da ideia de
contratar, não poderia o preferente requerer ao tribunal que o forçasse a
fazê-lo. O interesse de que o contrato efetivamente se celebre simplesmente não
faz parte do direito de preferência; este apenas assegura ao preferente que
será colocado numa posição de vantagem face a outros proponentes, sendo ao
eventual desrespeito dessa vantagem que acorre a tutela jurisdicional. Podemos
então dizer que a exigência de respeito pela legalidade à Administração não é
insuficiente e, consequentemente, não despromove o direito do particular a
interesse legítimo.
Para terminar será, talvez, interessante notar o que nos diz
Cassese acerca dos motivos do desenvolvimento, em Itália, da teoria do
interesse legítimo: “Nem nos devemos
admirar que a determinação de um juiz e uma exigência de tutela viessem,
depois, a ser satisfeitas pela admissão da existência de um direito permeado de
interesse público, porque isso faz parte do iliberalismo do liberalismo
europeu, especialmente o italiano, bem-sucedido em justificar as mais graves
intervenções autoritárias. Afirmava-se, em suma, um princípio liberal de tutela
das situações privadas, por meio de um instrumento iliberal, aquele segundo o
qual tais situações são o reflexo de interesses estatais (dir-se-á depois, mais
amplamente, públicos) ”. É certo que a Administração de hoje não é a do
século XIX e é, também, certo que doutrinas como a do Professor Freitas do
Amaral não sustentam o interesse legítimo como um instrumento iliberal; mas,
ainda assim, conhecendo a origem que esta figura tem e não tendo esta em
Portugal, como em Itália (onde, de resto, é hoje criticada), utilidade na determinação
do juiz competente, parece justo afirmar que o interesse legítimo não é um
conceito a manter: bastam-nos os direitos.
Bibliografia:
AMARAL,
Diogo Freitas do – Curso de Direito
Administrativo II, 3.ª ed., 2016;
CASSESE,
Sabino – Le Basi del Diritto
Amministrativo, 6.ª ed., 2003;
SILVA,
Vasco Pereira da – Para um Contencioso
Administrativo dos Particulares, 1997.
Francisco
Ferreira, nº 28134
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