segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Direitos Subjetivos e Interesses Legítimos

Pode ler-se no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa: “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. A dupla “direitos e interesses” surge também noutros preceitos da CRP (v.g. 268º, 271º…). Como a doutrina tem reconhecido, trata-se de uma importação de Itália. Veja-se o artigo 113º da Constituição italiana: “Relativamente a todos os actos da Administração pública, é sempre admitida a protecção jurisdicional dos direitos e dos interesses legítimos perante os órgãos de jurisdição ordinária ou administrativa”.
Antes de avançarmos no significado dessa bipartição, cabe fazer uma nota histórica relativa ao contencioso administrativo italiano.
Em 1889 é instaurado um sistema de dualidade de jurisdições (ordinária e administrativa), sendo que a determinação do juiz competente dependia de o litígio entre o particular e a Administração ter por objeto um direito subjetivo ou um interesse legítimo. Os direitos subjetivos seriam conhecidos pelo juiz comum, os interesses legítimos pelo juiz administrativo (de 1865 até aí era a própria Administração que apreciava a legalidade dos atos administrativos). Como diz o Professor Pereira da Silva: “O critério de distinção entre estas duas figuras nasceu, pois, como critério de distribuição de competências entre a jurisdição ordinária e a jurisdição administrativa e, só depois, se veio a tornar, também, uma categoria conceptual”. Atualmente, e cada vez mais, a tendência é a da criação de uma jurisdição exclusiva, devendo o juiz administrativo conhecer tanto direitos subjetivos como interesses legítimos.
Passemos agora à exposição do significado da divisão das posições jurídicas substantivas dos particulares em direitos e interesses legítimos no nosso país, tal como tem sido defendida pelo Professor Freitas do Amaral, embora tenhamos também em vista a generalidade da doutrina que advoga essa bipartição.
Para o Professor Freitas do Amaral tanto numa figura como noutra “existe um interesse privado reconhecido e protegido pela lei”. O direito subjetivo seria “um ou mais poderes legais que permitem manter ou obter a satisfação plena de um interesse privado”, inclusive “em caso de violação ou não cumprimento”, ou seja, merece uma proteção imediata, de primeira linha. Relativamente aos interesses legítimos, seriam estes constituídos por “um poder legal de garantir que o eventual sacrifício de um interesse privado, por razões de interesse público, seja sempre decidido com total respeito pela legalidade administrativa vigente”, havendo apenas uma proteção mediata, de segunda linha e que não assegura a satisfação do interesse privado (pois o interesse protegido diretamente seria o público).
Exemplificando, o Professor Freitas do Amaral refere que, se ao fim de vários anos, é atribuída uma diuturnidade a um funcionário, o direito que este tem à mesma permite-lhe exigi-la do Estado e, caso este não cumpra a obrigação, recorrer aos meios legalmente adequados para obter a realização do seu direito, ou, dizendo o mesmo, o funcionário, no fim de contas, verá sempre o seu interesse plenamente satisfeito; a propósito do interesse legítimo é referido um concurso para o lugar de professor catedrático, sendo que os candidatos que preenchessem as condições legais teriam um interesse legítimo na legalidade do processo, pelo que, a ser escolhido um candidato que não preenchesse as ditas condições, os restantes poderiam reagir, impugnando a decisão ilegal da Administração. Isto não significaria, contudo, que esses candidatos cumpridores tivessem direito ao cargo. Apenas lhe é dada a hipótese de “remover um obstáculo ilegal à satisfação do seu interesse”. De resto, a escolha continua a caber à Administração e o interesse do particular não estaria assegurado.
Segundo nos parece, esta tese é criticável, tal como, em geral, a distinção direito subjetivo/interesse legítimo.
Em primeiro lugar, note-se que a limitação (ou sacrifício) do interesse de um particular em nome do interesse (previsto na lei) de terceiros não implica a transformação de um direito em interesse legítimo. Vejamos o direito de propriedade (artigo 1305º do Código Civil), o paradigma do direito absoluto, através do qual o proprietário goza de modo pleno e exclusivo da coisa, sendo o seu direito oponível erga omnes. Apesar de tudo isso, os interesses de outros sujeitos podem implicar uma limitação da posição do proprietário: assim, por exemplo, são previstas as servidões legais de passagem (artigos 1550º e seguintes), através das quais um particular, titular de um direito potestativo, limita o gozo que outro tem da sua (própria) propriedade. Outra hipótese: a propriedade sobre bens de especial interesse cultural, classificados como tal pela administração, pode implicar uma situação de sujeição, através da qual o proprietário deve permitir o acesso público a esses bens (veja-se o artigo 21º da Lei nº 197/2001 de 8 de Setembro). Tentando retirar algo destas hipóteses, diríamos que em ambos se dá uma limitação do interesse do particular em proveito do interesse de terceiros; contudo, no segundo há intervenção da Administração, ao invés do primeiro. Identifica-se, no primeiro exemplo um direito subjetivo, já no segundo vê-se apenas um interesse legítimo. Será isto correto? A simples presença da Administração implicaria, então, um desdobramento da posição do particular, que, sobre o mesmo bem, ora tem um direito subjetivo, ora tem um interesse legítimo, conforme prive com particulares ou com a Administração. À luz da Constituição, este tipo de construções parece de evitar: o direito de propriedade privada, previsto no artigo 62º, serve o particular face a terceiros e face à Administração, tanto mais que, como diz Sabino Cassese, “as constituições modernas são dirigidas, antes de qualquer outra coisa, à defesa dos cidadãos no confronto com o poder público”. Assim, a limitação dos direitos (em ambas as situações referidas) resulta da lei, não da presença da Administração, tornando-se incoerente a transformação do direito em interesse legítimo.
Em segundo lugar, não se deve confundir a tutela de uma situação jurídica com o seu conteúdo. Retomemos o segundo exemplo do Professor Freitas do Amaral: o candidato ao lugar de professor catedrático que cumprira os requisitos legais teria apenas um interesse legítimo, na medida em que, não podendo assegurar o seu interesse ao cargo, ser-lhe-ia possível exigir a legalidade da decisão que o afete. Encontramos uma situação, de certo modo simétrica, no direito de preferência (artigo 414º e seguintes do Código Civil): se o preferente oferece o mesmo que os outros eventuais proponentes, o obrigado deve escolher contratar com ele. Relativamente ao concurso para professor, diríamos: se um candidato não oferece o mesmo que os outros (i.e. não preenche os requisitos que estes cumprem), a Administração não deve escolhê-lo. Haverá aqui um interesse legítimo e ali um direito subjetivo? Não, em ambos os casos temos direitos. A insuficiência da tutela (apenas um direito à legalidade) para garantir o interesse é ilusória já que nunca se poderia assegurar o que uma situação não tem por conteúdo. Assim, caso o obrigado desistisse da ideia de contratar, não poderia o preferente requerer ao tribunal que o forçasse a fazê-lo. O interesse de que o contrato efetivamente se celebre simplesmente não faz parte do direito de preferência; este apenas assegura ao preferente que será colocado numa posição de vantagem face a outros proponentes, sendo ao eventual desrespeito dessa vantagem que acorre a tutela jurisdicional. Podemos então dizer que a exigência de respeito pela legalidade à Administração não é insuficiente e, consequentemente, não despromove o direito do particular a interesse legítimo.
Para terminar será, talvez, interessante notar o que nos diz Cassese acerca dos motivos do desenvolvimento, em Itália, da teoria do interesse legítimo: “Nem nos devemos admirar que a determinação de um juiz e uma exigência de tutela viessem, depois, a ser satisfeitas pela admissão da existência de um direito permeado de interesse público, porque isso faz parte do iliberalismo do liberalismo europeu, especialmente o italiano, bem-sucedido em justificar as mais graves intervenções autoritárias. Afirmava-se, em suma, um princípio liberal de tutela das situações privadas, por meio de um instrumento iliberal, aquele segundo o qual tais situações são o reflexo de interesses estatais (dir-se-á depois, mais amplamente, públicos) ”. É certo que a Administração de hoje não é a do século XIX e é, também, certo que doutrinas como a do Professor Freitas do Amaral não sustentam o interesse legítimo como um instrumento iliberal; mas, ainda assim, conhecendo a origem que esta figura tem e não tendo esta em Portugal, como em Itália (onde, de resto, é hoje criticada), utilidade na determinação do juiz competente, parece justo afirmar que o interesse legítimo não é um conceito a manter: bastam-nos os direitos.

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo II, 3.ª ed., 2016;
CASSESE, Sabino – Le Basi del Diritto Amministrativo, 6.ª ed., 2003;
SILVA, Vasco Pereira da – Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, 1997.


Francisco Ferreira, nº 28134

Sem comentários:

Enviar um comentário