sábado, 29 de outubro de 2016

A fuga para o Direito Privado : Caso EDP

   A privatização da Administração Pública é um fenómeno que consiste no exercício, por entidades privadas de funções Administrativas. De uma outra perspectiva, pode ainda ser entendido como a transferência para particulares de poderes soberanos normalmente integrantes da esfera das autoridades públicas. Privatizar a Administração Pública consiste, portanto, em reduzir a esfera de influência da atuação do Direito Administrativo.

   Do ponto de vista histórico, o professor Dr. Paulo Otero refere que a redução da intervenção do Estado foi uma realidade que passa a ser consensual a partir da década de 80, com a queda dos regimes comunistas europeus e com o desmantelamento das grandes máquinas estaduais, o que levou à tendência privatizadora da Administração Pública. Os anos 90 foram marcados por uma verdadeira “fúria privatizadora” da Administração Pública, colocando-se nos dias de hoje a questão da limitação jurídica deste fenómeno de fuga para o Direito Privado.
   Pensa-se, portanto, que a passagem do Estado Social para o Pós-Social tenha sido o que levou à generalização da atividade administrativa jurídico-privada. Há que ponderar que tipo de implicâncias tem este recurso generalizado ao Direito Privado. Autores como Achterberg referiram que um dos riscos deste fenómeno é a fragmentação e dispersão causada, que põe em causa toda a unidade da Administração.

   No meu tema em concreto (privatização da EDP), irei tratar da “Privatização do acesso a uma atividade económica”. Consiste na abertura à iniciativa económica privada de um ou mais setores básicos até então vedados, ou seja que eram explorados por entidades públicas em regime de monopólio.
 
    A EDP nasceu do DL 502/76 de 30 de Junho.
   Posteriormente, o DL 205 – G/75 de 16 de Abril resultou da nacionalização de empresas que operavam na produção, transporte e distribuição elétrica.
   A privatização da EDP conheceu 8 fases, tendo a primeira sido iniciada em Junho de 1997, aliada à revisão constitucional de 1997. A revisão constitucional de 1997 procedeu à desconstitucionalização da imperatividade de existirem setores básicos vedados à iniciativa privada, o que permitiu até aos dias de hoje proceder a uma privatização de áreas de intervenção económica até então vedada à iniciativa económica privada.
   A última fase de privatização da EDP teve lugar com a aprovação, pelo governo português, do DL nº106-A/2011 de 26 de Outubro. Esta 8ª e última fase de privatização do capital social da empresa foi realizada mediante venda direta, pela Parpública, de ações representativas de 21,35% do capital social da EDP.
   Segundo um estudo da “PricewaterhouseCoopers”, a venda de 21,3% do capital social da EDP à China Three Gorges foi a nona maior transação do mundo na área da energia em 2011.
   Foram conhecidos pelo menos 3 interessados relevantes, no que diz respeito à compra do capital social da EDP: a já referida China Three Gorges, a alemã E.ON e a brasileira Eletrobas. A proposta da Three Gorges foi a que convenceu o governo pelas mínimas exigências, para além do mais, o preço estipulado pelo Estado para a venda das ações era de 2,7 mil milhoes de euros, e a chinesa Three Gorges ofereceu ao Estado um total de 8,7 mil milhões de euros.
   Apesar de à partida, a meu ver, o negócio realizado pelo Estado tenha sido convincente, visto que o valor pretendido para a venda foi até largamente ultrapassado, uma auditoria do Tribunal de Contas aos processos de privatização do setor elétrico levou à conclusão que o Estado poderia ter arrecadado mais dinheiro através da obtenção de dividendos da empresa, que atualmente é considerada como uma das empresas mais valiosas do país  (se é que não foi sempre, pela competência fundamental para o bem-estar coletivo que leva a cabo). Esta auditoria divide consequentemente a opinião dos que debatem acerca da eficiência da privatização, considerando eu que seria mais rentável manter uma parcela da empresa nas mãos do Estado, a longo prazo, do que apenas incitar à prossecução do abatimento imediato da dívida pública através de uma frenética política de privatizações de entidades públicas.

   Na minha ótica, muitas destas tentativas de agilização da economia e desburocratização da mesma pouco beneficiam o Estado em termos de receitas e despesas. São políticas que podem até constituir afrontas ao bem-estar social e aos princípios que o Direito Administrativo usa para disciplinar a administração. Chega até a existir uma situação de ingerência em assuntos que apenas deviam competir ao Estado e à Administração Pública, exemplos como a AGECOP (Associação de Gestão da Cópia Privada) que sendo uma entidade com personalidade jurídica privada, exerce uma função pública (a coleta de impostos). Deixar setores indispensáveis como o da eletricidade e transportes em mãos exclusivamente privadas e para além do mais (na maior parte das vezes) estrangeiras, sem restrições de normas públicas, torna-se um perigo para a soberania do país, para o bem estar coletivo e para o princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (consagrado no artigo 4º do CPA), podendo ainda constituir ameaça indireta a direitos fundamentais presentes na nossa Constituição.
   Privatizações como a da EDP têm como justificação a redução da dívida pública, mas a meu ver esta justificação advoga uma política ineficaz. A dívida pública portuguesa ronda os 240 mil milhões de euros atualmente e a vinda da troika trouxe um plano de privatizações que rendeu cerca de 9,2 mil milhões de euros, uma quantia que não deixa de ser uma gota no meio do Oceano e que não justifica a desnacionalização de serviços essenciais para os cidadãos.

   Apesar de todas as vantagens e da necessidade pragmática do fenómeno da privatização, julgo que estamos perante um verdadeiro cenário de desnacionalização. É o Presidente da República Popular da China quem controla a eletricidade em Portugal; os CTT encontram-se numa situação de plurifinanciamento, de fundos suíços, americanos, alemães, franceses, entre outros… ; Duas das mais importantes portas de entrada na capital do país, o aeroporto e as Pontes Vasco da Gama e 25 de Abril, encontram-se nas mãos de investimento francês;
   Para além do mais, muitas das políticas de privatização põem em causa a “essência” do Estado Pós-Social de Direito, a função de Estado Prestador. Temos o exemplo dos Correios, em que o Estado reduziu substancialmente o número de funcionários e reduziu as estações de correios. Tudo para tornar a empresa mais apetecível aos interesses privados.

   Inúmeros têm sido os autores que ao longo dos tempos têm tentado justificar o fenómeno da fuga às vinculações jurídico-públicas. A professora Dra. Maria João Estorninho enuncia na sua tese de doutoramento, entre várias causas: A libertação das regras de organização de Direito Público e a possibilidade de adopção de processos de decisão e atuação mais flexíveis, mais desburocratizados, mais rápidos e supostamente mais eficientes. Assim como a diversificação de meios de financiamento (através da cooperação entre investidores privados). A redução de custos administrativos e o alívio da Despesa Pública.
   O professor Dr. Paulo Otero enuncia como motivos: A modernização das estruturas económicas, aumentando a sua competitividade e contribuindo para as estratégias de reestruturação sectorial e empresarial; Reforçar a capacidade das empresas nacionais; Reduzir o peso económico da dívida pública;

   Apesar do crescente movimento a favor da Privatização das entidades públicas, existem Limites Gerais à Privatização da Administração Pública:
1-      Limites decorrentes de funções públicas típicas de soberania: defesa nacional, segurança e administração internas, justiça e negócios estrangeiros – áreas insuscetíveis de serem objeto de privatização;
2-      Cláusula Constitucional de bem-estar ou de Estado Social, inerente ao actual modelo de Estado e cuja implantação está confiada à Administração Pública enquanto tarefa fundamental ou incumbência principal do Estado;
3-      Sem expressa habilitação constitucional ou legal não poderá ser desencadeada nenhuma forma de privatização da Administração Pública;
4-      Expressão de um modelo de “economia mista” consagrado na CRP, circunstância que impede a eliminação total ou real do setor público da propriedade de meios de produção;

   Para a professora Dra. Maria João Estorninho, é uma vitória o facto da doutrina estar alerta e preocupada com o movimento de fuga para o Direito Privado. Uma preocupação fundada e justificada pela forma como a Administração Pública se tem libertado da vinculação de direitos fundamentais e conseguir, de uma forma elegante, dar a volta à lei e à CRP, obtendo um espaço de livre arbítrio administrativo.
  
   São apontadas na doutrina duas soluções para evitar a fuga para o Direito Privado:
1-      A ideia radical – consiste na completa proibição ao recurso às formas de actuação jurídico-privadas pela Administração Pública.
2-      A solução que visa permitir a atuação da Administração segundo o Direito Privado, mas obrigando a administração a ter em consideração certas normas e princípios do Direito Público.
Em geral tem sido este segundo “remédio” a que a doutrina tem vindo a recorrer para amenizar a febre da fuga para o Direito Privado.
   A professora Dra. Maria João Estorninho refere que é urgente e fundamental encontrar o equilíbrio na conjugação entre o Direito Público e o Direito Privado, de modo a que se evite uma "publicização" excessiva. Existe portanto uma dificuldade em harmonizar as necessidades de eficácia, com a necessidade de garantia de Direitos Particulares. A doutrina chega a dizer que “santa coisa” são os princípios constitucionais, mas lembra que “não se morre só de pouco alimento, também o excesso dele faz mal”.

 
   Em Conclusão:
   A meu ver, a submissão da Administração Pública ao Direito Privado deve pautar-se sobretudo por parâmetros de justiça para com os particulares. A privatização não deve ser vista apenas do lado sombrio do prisma, onde saltam à vista os efeitos como a desnacionalização dos serviços e a fragmentação do poder Administrativo. A fuga para o Direito Privado tem de ser vista pelo prisma da eficiência, da diminuição dos custos administrativos, do serviço prestado ao consumidor e tendo em conta, como é claro, o balanço das despesas e receitas públicas como reflexo deste fenómeno.
   Existe uma necessidade de defender as privatizações que tornem a economia menos estatizada. Visto que em Portugal existe a imposição de diminuir as necessidades de endividamento do país, de reduzir a fiscalidade a fim de incentivar o investimento e a criação de emprego.

Bibliografia:
Maria João Estorninho – tese de doutoramento “A fuga para o Direito Privado”
Coordenadas jurídicas da Privatização da Administração Pública – Paulo Otero
Curso de Direito Administrativo vol I – Freitas do Amaral
Lições de Direito Constitucional Vol II – José Melo Alexandrino
Edp.pt – aba investidores

Gabriel Nogueira Calado
Aluno nº 28238

Direito Administrativo – Turma B15

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