O conceito de margem livre de decisão administrativa como anteriormente foi afirmado neste blog é um espaço de liberdade da atuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade, implicando, portanto, uma parcial autodeterminação administrativa (professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos). Este conceito é com frequência designado por autonomia pública devido às semelhanças que apresenta com o fenómeno do direito civil: a autonomia privada.
Apesar de apresentarem aspetos em comum, estes dois conceitos não devem ser misturados, pois o tipo de liberdade conferida aos sujeitos no direito administrativo não é igual nem sequer semelhante ao tipo de liberdade que as partes dispõem no âmbito do direito privado. Se por um lado os particulares usufruem de liberdade para produzir todo o tipo de efeitos jurídicos que a lei não proíba, na vertente pública a liberdade de decisão está limitada pelo princípio da
legalidade, ou seja, a administração poderá apenas produzir os efeitos
jurídicos estipulados na lei e ao mesmo tempo não pode dispor contrariamente à
lei.
A
ideia da margem de livre decisão pode ser concretizada através de duas formas:
a discricionariedade e a margem de livre apreciação.
O
poder discricionário é observável, de acordo com o professor Marcello Caetano, quando o seu exercício fica entregue ao
critério do respectivo titular, deixando-lhe liberdade de escolha do
procedimento a adoptar em cada caso como mais ajustado à realização do
interesse público protegido pela norma que o confere.
Tal liberdade
pode ser uma discricionariedade de acção
se disser respeito à decisão entre atuar ou não atuar, uma discricionariedade de escolha se se inserir na preferência entre
duas ou mais possibilidades de atuação concreta previstas normativamente ou
ainda discricionariedade criativa no
sentido de criação concreta conforme a jurisdição aplicável.
Estas três
modalidades de discricionariedade tanto podem ser autonomamente verificadas
como podem ser cumulativamente verificáveis, por exemplo:
A norma do art.145º,3
CPA confere discricionariedade de ação («O autor da revogação pode, no próprio
ato, atribuir-lhe efeito retroativo»)
A norma do
art.103º,2 CPA confere discricionariedade de escolha («O órgão instrutor pode
dispensar a audiências dos interessados»)
A norma do
art.157º,1 CPA confere discricionariedade criativa («Em caso de execução para
prestação de facto fungível, a administração notifica o obrigado para que
proceda à prática do ato devido, fixando um prazo razoável para o seu
cumprimento»).
A norma do
art.174º,2 CPA confere simultaneamente as três modalidades de
discricionariedade («O órgão competente para decidir o recurso pode, se dor
caso disso, anular [discricionariedade de ação], no todo ou em parte, o
procedimento administrativo e determinar a realização de nova instrução ou
[discricionariedade de escolha] de diligências complementares
[discricionariedade criativa]»).
A conceção
de margem de livre apreciação (Beurteilungsspielraum)
foi pela primeira vez teorizada por Otto Bachof, um jurista alemão, em meados
do século XX e resulta de acordo com os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos da atribuição pela lei, à administração, de
uma liberdade na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos
pressupostos das suas decisões e não, expressamente, como sucede na
discricionariedade, de uma liberdade de escolha entre várias alternativas de
actuação juridicamente admissíveis.
Na
continuação da linha de pensamento destes dois professores o fenómeno da margem
de livre apreciação respeita sobretudo à previsão das normas
jurídicas-administrativas, normas estas que foram alvo do processo de tradução
para a forma escrita e, como tal estão limitadas pelos seus naturais
condicionantes.
Em certas
ocasiões as palavras apresentam um certo grau de incerteza na sua interpretação
que, invariavelmente, obsta a que se faça uma interpretação equivalente por
parte de todos os intérpretes, a título exemplificativo de palavras possuidoras
de incerteza semântica temos: urgência, interesse público, conveniência de
serviço, circunstâncias excecionais etc.
Assim, a
margem livre de apreciação vem defender a tese de que na interpretação
normativa, o uso de conceitos indeterminados, deve em certas ocasiões conferir uma
margem de interpretação que não se restrinja a considerar que exista somente
uma solução correta para a solução do caso concreto.
A questão,
porém, coloca-se no sentido de determinar criteriosamente as situações em que a
indeterminação conceptual confere e as situações em que não confere margem de
livre apreciação.
O autor da
tese, Otto Bachof, não conseguiu apresentar qualquer solução para a questão, no
entanto é de salientar na doutrina alemã a opinião, que influenciou a doutrina
portuguesa, de Wilhelm Schmidt que considerava que o uso de conceitos
indeterminados levantava apenas dificuldades linguísticas, suscetíveis de
resolução através de raciocínios lógico-dedutivos, a margem de livre apreciação
não decorreria não destes conceitos, mas de outros conceitos indeterminados que
teriam de ser objeto de concretização minuciosa envolvendo juízos de prognose.
No entender dos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado
Matos a margem de livre apreciação deve assentar em três aspetos. O primeiro é
o apuramento do sentido subjacente à expressão do sentido normativo dos
conceitos indeterminados. O segundo passa pela formulação de um pensamento funcionalmente
compatível com o princípio da separação de poderes, que impõe a margem de livre
apreciação nos casos em que o controlo jurisdicional da concretização dos conceitos indeterminados implicasse a usurpação do poder
administrativo. O terceiro aspeto deve envolver a ponderação entre o princípio
da separação de poderes e os direitos fundamentais dos particulares afetados
pela decisão administrativa.
Apesar destas conceções ajudarem na
resolução da questão, nenhuma delas resolve inteiramente o problema até porque
este não aparenta ser resolúvel com apenas uma fórmula, portanto fica ainda por saber em que situações deve a incerteza conceptual conferir margem
de livre apreciação.
Bibliografia
CAETANO, Marcelo. Manual de Direito Administrativo – Vol. I.
10º ed. Almedina, 1984
REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. Direito
Administrativo Geral-Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais. 3ªed.
Dom Quixote, 2008
André Esteves nº 28180
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