segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A Margem de Livre Decisão


           O conceito de margem livre de decisão administrativa como anteriormente foi afirmado neste blog é um espaço de liberdade da atuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade, implicando, portanto, uma parcial autodeterminação administrativa (professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos). Este conceito é com frequência designado por autonomia pública devido às semelhanças que apresenta com o fenómeno do direito civil: a autonomia privada.

          Apesar de apresentarem aspetos em comum, estes dois conceitos não devem ser misturados, pois o tipo de liberdade conferida aos sujeitos no direito administrativo não é igual nem sequer semelhante ao tipo de liberdade que as partes dispõem no âmbito do direito privado. Se por um lado os particulares usufruem de liberdade para produzir todo o tipo de efeitos jurídicos que a lei não proíba, na vertente pública a liberdade de decisão está limitada pelo princípio da legalidade, ou seja, a administração poderá apenas produzir os efeitos jurídicos estipulados na lei e ao mesmo tempo não pode dispor contrariamente à lei.
      A ideia da margem de livre decisão pode ser concretizada através de duas formas: a discricionariedade e a margem de livre apreciação.
          O poder discricionário é observável, de acordo com o professor Marcello Caetano, quando o seu exercício fica entregue ao critério do respectivo titular, deixando-lhe liberdade de escolha do procedimento a adoptar em cada caso como mais ajustado à realização do interesse público protegido pela norma que o confere.
Tal liberdade pode ser uma discricionariedade de acção se disser respeito à decisão entre atuar ou não atuar, uma discricionariedade de escolha se se inserir na preferência entre duas ou mais possibilidades de atuação concreta previstas normativamente ou ainda discricionariedade criativa no sentido de criação concreta conforme a jurisdição aplicável.
Estas três modalidades de discricionariedade tanto podem ser autonomamente verificadas como podem ser cumulativamente verificáveis, por exemplo:
A norma do art.145º,3 CPA confere discricionariedade de ação («O autor da revogação pode, no próprio ato, atribuir-lhe efeito retroativo»)
A norma do art.103º,2 CPA confere discricionariedade de escolha («O órgão instrutor pode dispensar a audiências dos interessados»)
A norma do art.157º,1 CPA confere discricionariedade criativa («Em caso de execução para prestação de facto fungível, a administração notifica o obrigado para que proceda à prática do ato devido, fixando um prazo razoável para o seu cumprimento»).
A norma do art.174º,2 CPA confere simultaneamente as três modalidades de discricionariedade («O órgão competente para decidir o recurso pode, se dor caso disso, anular [discricionariedade de ação], no todo ou em parte, o procedimento administrativo e determinar a realização de nova instrução ou [discricionariedade de escolha] de diligências complementares [discricionariedade criativa]»).
A conceção de margem de livre apreciação (Beurteilungsspielraum) foi pela primeira vez teorizada por Otto Bachof, um jurista alemão, em meados do século XX e resulta de acordo com os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos da atribuição pela lei, à administração, de uma liberdade na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões e não, expressamente, como sucede na discricionariedade, de uma liberdade de escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis.
Na continuação da linha de pensamento destes dois professores o fenómeno da margem de livre apreciação respeita sobretudo à previsão das normas jurídicas-administrativas, normas estas que foram alvo do processo de tradução para a forma escrita e, como tal estão limitadas pelos seus naturais condicionantes.
Em certas ocasiões as palavras apresentam um certo grau de incerteza na sua interpretação que, invariavelmente, obsta a que se faça uma interpretação equivalente por parte de todos os intérpretes, a título exemplificativo de palavras possuidoras de incerteza semântica temos: urgência, interesse público, conveniência de serviço, circunstâncias excecionais etc.
Assim, a margem livre de apreciação vem defender a tese de que na interpretação normativa, o uso de conceitos indeterminados, deve em certas ocasiões conferir uma margem de interpretação que não se restrinja a considerar que exista somente uma solução correta para a solução do caso concreto.
A questão, porém, coloca-se no sentido de determinar criteriosamente as situações em que a indeterminação conceptual confere e as situações em que não confere margem de livre apreciação.
O autor da tese, Otto Bachof, não conseguiu apresentar qualquer solução para a questão, no entanto é de salientar na doutrina alemã a opinião, que influenciou a doutrina portuguesa, de Wilhelm Schmidt que considerava que o uso de conceitos indeterminados levantava apenas dificuldades linguísticas, suscetíveis de resolução através de raciocínios lógico-dedutivos, a margem de livre apreciação não decorreria não destes conceitos, mas de outros conceitos indeterminados que teriam de ser objeto de concretização minuciosa envolvendo juízos de prognose.
 No entender dos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos a margem de livre apreciação deve assentar em três aspetos. O primeiro é o apuramento do sentido subjacente à expressão do sentido normativo dos conceitos indeterminados. O segundo passa pela formulação de um pensamento funcionalmente compatível com o princípio da separação de poderes, que impõe a margem de livre apreciação nos casos em que o controlo jurisdicional da concretização dos conceitos indeterminados implicasse a usurpação do poder administrativo. O terceiro aspeto deve envolver a ponderação entre o princípio da separação de poderes e os direitos fundamentais dos particulares afetados pela decisão administrativa.
Apesar destas conceções ajudarem na resolução da questão, nenhuma delas resolve inteiramente o problema até porque este não aparenta ser resolúvel com apenas uma fórmula, portanto fica ainda por saber em que situações deve a incerteza conceptual conferir margem de livre apreciação.




Bibliografia

CAETANO, Marcelo. Manual de Direito Administrativo – Vol. I. 10º ed. Almedina, 1984

REBELO DE SOUSA, Marcelo; SALGADO DE MATOS, André. Direito Administrativo Geral-Tomo I- Introdução e Princípios Fundamentais. 3ªed. Dom Quixote, 2008


André Esteves nº 28180

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