O fundamento e fim
último da administração pública (tomando a expressão em sentido material) a
realização do bem comum, a prossecução do interesse público, a salvaguarda dos
interesses partilhados de uma comunidade que, para esse efeito, organiza e
mantém um conjunto de serviços, cuja composição, organização e actuação se
encontra fortemente regulada pela Lei (ou pelo “bloco de legalidade” a que se
referem os professores André Salgado de Matos e Marcelo Rebelo de Sousa, ideia
esta sintetizada pela redacção do artigo 3º/1 do Código de Procedimento
Administrativo, que faz referência à Lei e ao Direito), a que é submissa,
estando ainda sujeita à fiscalização judicial dos seus actos. Pode portanto
concluir-se que a sua natureza é secundária e, diríamos, duplamente
subordinada.
De facto, qualquer
referência à ideia de autonomia deve, no contexto em que nos movimentamos, ser
enquadrada pelo Princípio da Legalidade. “Autonomia” não pode assim significar
“liberdade”, no sentido privatístico do termo, uma vez que daquele princípio
decorre, em primeira linha, a ideia de vinculação (ainda que a discricionariedade
administrativa se revista de particular relevância no contexto de uma discussão
acerca do conceito de interesse público), podendo ainda extrair-se-lhe a ideia
de competência, ambas alheias à estruturação das figuras de Direito Privado,
cujo signo fundamental será o da Autonomia Privada, de que resultam a liberdade
de celebração e de estipulação, incaracterísticas no âmbito do Direito
Administrativo. Ainda assim, e a propósito da margem de decisão deixada pelo
Direito à actuação administrativa, fala-se de um espaço de auto-determinação,
regulado sempre pelo bloco de legalidade, e por isso relativo. Afigura-se assim
lícito afirmar que a Função Legislativa é subordinante relativamente à
actividade administrativa, sendo a Lei, como constante do Curso de Direito Administrativo do Professor Diogo Freitas do
Amaral, o seu “(...) [o] fundamento, [o] critério e [o] limite”.
Por outro lado, a Função
Política vem também condicionar determinantemente a administração, porquanto
lhe caiba a determinação do interesse geral da colectividade – o interesse
público -, a extrair da norma singular que o concretize. Portanto, e tomando a
administração pública como mecanismo orientado à “(...) execução ou
desenvolvimento de uma política (...)”, facilmente se pode formular a suspeita
de que o próprio interesse público tem natureza não só abstractamente
indeterminável, podendo apenas extrair-se, como referido, da análise
teleológica de uma norma concreta, mas também essencialmente variável.
Pertinente seja, talvez,
que indaguemos da relação entre a forma de exercício do poder político e a
determinação ou determinabilidade do interesse público. Poderá afinal a ideia
de interesse público encerrar em si um poderoso argumento justificativo e de
alcance ilimitado da acção do Estado, ainda que condicionado pelas orientações
do legislador? Pode o legislador considerar de interesse público o que lhe
apraza? Pode a administração justificar a sua actuação recorrendo à indeterminabilidade daquela expressão?
Cabe primeiramente
analisar a ideia de “interesse público”, para tal recuando historicamente até 1750,
data da primeira publicação da obra “Do Contrato Social”, de Jean-Jacques
Rousseau. Esquivando-nos a morosas e elaboradas considerações de carácter
filosófico, centramo-nos na ideia de que esta “vontade geral” não se
consubstancia na soma das diversas vontades particulares mas, em última
instância, no exercício da liberdade de instituir o próprio Contrato Social,
isto é: a liberdade de delegar num corpo político as decisões acerca daquilo
que se deve ter por “bem comum” e, consequentemente, do modo mais eficaz e
adequado de o prosseguir.
No entanto, e apesar
disto, uma análise histórica do contexto da edificação do conceito de Estado e
do adjectivo que posteriormente se lhe justapôs – soberano – põe talvez em
causa o espírito filosófico que anima a tese de Rousseau.
O processo de “definição
unitária do território” (História do
Direito Português, Ruy e Martim de Albuquerque) foi, como afirmado múltiplas
vezes pela Doutrina, lento e não isento de dificuldades, entre elas a
primeiramente fraca produção legislativa, bem como dispersão administrativa,
não sendo possível referir-se-lhe como conjunto de órgãos e serviços que actuam
tendo em vista a prossecução do interesse público, sendo para isso dotados de
determinadas competências. Não pode portanto, parece-nos, falar-se ainda de
interesse público, uma vez que este pressupõe uma ideia à época desconhecida: a
própria ideia de Estado. O interesse do Monarca, que concentra em si os poderes
legislativo, executivo e judicial, e cujo ministério tem origem divina, é
tomado como o interesse dos seus súbditos, mas apenas indirectamente, e na
medida em que se entenda que aquele não governa em função de si, mas daqueles,
segundo as teorizações medievais acerca das virtudes de um Rei Justo, sendo que
todas elas têm, inevitavelmente, origem em escolas teocráticas de pensamento
político.
Neste contexto de
profunda descentralização – e de não rara dessincronia entre o Rei e os seus
representantes a nível local, bem como entre o primitivo poder central e as
jurisdições que à sua revelia se constituíam– a auto-determinação do poder
político passa por dois vectores fundamentais: na ordem externa, a
independência face ao Império e ao Papado (o que vem a suceder com o ocaso da
Respublica Christiana e a determinante Paz de Vestefália), na ordem interna,
surpreendentemente, a separação de poderes, entendida num sentido diferente daquele
vinculado por Montesquieu – sendo um dos
primeiros exemplos desta separação a tentativa, por parte do Monarca, de
limitar os privilégios de foro, chamando a si o controlo jurisdicional sobre o
próprio território e afastando entidades religiosas do exercício desse poder.
No entanto, e regressando à questão fundamental, pode entender-se que a
invocação da “vontade geral” por parte do Monarca Absoluto mais não é que um
artifício. Afinal, sendo este o seu exclusivo intérprete, e concentrado em si
os poderes a que nos referimos acima, vê-se o Príncipe dotado de todos os
instrumentos necessários à prossecução de todos os fins, bastando para isso
justifica-los como de interesse colectivo (podendo eventualmente relacionar-se
a ideia de “Raison d´Ètat”).
Assim, e em consequência
da requerida brevidade deste comentário, responde-se às questões enunciadas
evocando a evolução histórica dos tipos de Estado e recorrendo à imperatividade
do Princípio da Legalidade, não esquecendo que o administrado goza de tutela
jurisdicional efectiva (artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa)
e que, para além de subordinada à Lei – não esquecendo a própria Constituição -,
a administração se subordina também aos tribunais para fiscalização dos seus
actos. A própria evolução do Princípio da Legalidade que, como referido pelos
professores André Salgado de Matos e Marcelo Rebelo de Sousa, ilustra a
introdução progressiva do elemento democrático, que vem a culminar no conceito
de preferência de lei. Assim, e da
mesma forma, se justifica que o interesse
público não possa, em princípio, ser arbitrariamente invocado ou
indiscriminadamente retirado da norma, em princípio fruto da razoável
ponderação do legislador, devendo ainda a administração fundamentar os actos
administrativos, nos termos do artigo 152º do Novo Código de Procedimento
Administrativo e gozando os particulares dos mecanismos constitucionalmente
consagrados e que lhe permitem reagir contra a administração, não podendo nunca
o "interesse público, como sucedido noutros contextos históricos,
funcionar como válvula de escape para a actuação discricionária da
administração, mesmo quando lhe seja concedido determinado espaço, pelo
legislador, para a resolução de casos concretos, como apontado pelo Professor
Rogério Soares. Não se tratará nunca de uma área livre de Direito, mas de um
espaço de conformação por parte da administração, democraticamente legitimado, podendo
os tribunais declarar o acto administrativo viciado, referindo-se a esse
propósito as figura do desvio de poder,
do erro de facto e do erro maniesto de apreciação. O conceito indeterminado de "interesse público" não é, assim, porta aberta para o arbítrio administrativo.
Filipa Lira Machado de Almeida, nº 28166
Filipa Lira Machado de Almeida, nº 28166
Sem comentários:
Enviar um comentário