domingo, 30 de outubro de 2016

Interesse Público, Discricionariedade e Arbítrio

O fundamento e fim último da administração pública (tomando a expressão em sentido material) a realização do bem comum, a prossecução do interesse público, a salvaguarda dos interesses partilhados de uma comunidade que, para esse efeito, organiza e mantém um conjunto de serviços, cuja composição, organização e actuação se encontra fortemente regulada pela Lei (ou pelo “bloco de legalidade” a que se referem os professores André Salgado de Matos e Marcelo Rebelo de Sousa, ideia esta sintetizada pela redacção do artigo 3º/1 do Código de Procedimento Administrativo, que faz referência à Lei e ao Direito), a que é submissa, estando ainda sujeita à fiscalização judicial dos seus actos. Pode portanto concluir-se que a sua natureza é secundária e, diríamos, duplamente subordinada.
De facto, qualquer referência à ideia de autonomia deve, no contexto em que nos movimentamos, ser enquadrada pelo Princípio da Legalidade. “Autonomia” não pode assim significar “liberdade”, no sentido privatístico do termo, uma vez que daquele princípio decorre, em primeira linha, a ideia de vinculação (ainda que a discricionariedade administrativa se revista de particular relevância no contexto de uma discussão acerca do conceito de interesse público), podendo ainda extrair-se-lhe a ideia de competência, ambas alheias à estruturação das figuras de Direito Privado, cujo signo fundamental será o da Autonomia Privada, de que resultam a liberdade de celebração e de estipulação, incaracterísticas no âmbito do Direito Administrativo. Ainda assim, e a propósito da margem de decisão deixada pelo Direito à actuação administrativa, fala-se de um espaço de auto-determinação, regulado sempre pelo bloco de legalidade, e por isso relativo. Afigura-se assim lícito afirmar que a Função Legislativa é subordinante relativamente à actividade administrativa, sendo a Lei, como constante do Curso de Direito Administrativo do Professor Diogo Freitas do Amaral, o seu “(...) [o] fundamento, [o] critério e [o] limite”.
Por outro lado, a Função Política vem também condicionar determinantemente a administração, porquanto lhe caiba a determinação do interesse geral da colectividade – o interesse público -, a extrair da norma singular que o concretize. Portanto, e tomando a administração pública como mecanismo orientado à “(...) execução ou desenvolvimento de uma política (...)”, facilmente se pode formular a suspeita de que o próprio interesse público tem natureza não só abstractamente indeterminável, podendo apenas extrair-se, como referido, da análise teleológica de uma norma concreta, mas também essencialmente variável.
Pertinente seja, talvez, que indaguemos da relação entre a forma de exercício do poder político e a determinação ou determinabilidade do interesse público. Poderá afinal a ideia de interesse público encerrar em si um poderoso argumento justificativo e de alcance ilimitado da acção do Estado, ainda que condicionado pelas orientações do legislador? Pode o legislador considerar de interesse público o que lhe apraza? Pode a administração justificar a sua actuação recorrendo à indeterminabilidade daquela expressão?
Cabe primeiramente analisar a ideia de “interesse público”, para tal recuando historicamente até 1750, data da primeira publicação da obra “Do Contrato Social”, de Jean-Jacques Rousseau. Esquivando-nos a morosas e elaboradas considerações de carácter filosófico, centramo-nos na ideia de que esta “vontade geral” não se consubstancia na soma das diversas vontades particulares mas, em última instância, no exercício da liberdade de instituir o próprio Contrato Social, isto é: a liberdade de delegar num corpo político as decisões acerca daquilo que se deve ter por “bem comum” e, consequentemente, do modo mais eficaz e adequado de o prosseguir.
No entanto, e apesar disto, uma análise histórica do contexto da edificação do conceito de Estado e do adjectivo que posteriormente se lhe justapôs – soberano – põe talvez em causa o espírito filosófico que anima a tese de Rousseau.
O processo de “definição unitária do território” (História do Direito Português, Ruy e Martim de Albuquerque) foi, como afirmado múltiplas vezes pela Doutrina, lento e não isento de dificuldades, entre elas a primeiramente fraca produção legislativa, bem como dispersão administrativa, não sendo possível referir-se-lhe como conjunto de órgãos e serviços que actuam tendo em vista a prossecução do interesse público, sendo para isso dotados de determinadas competências. Não pode portanto, parece-nos, falar-se ainda de interesse público, uma vez que este pressupõe uma ideia à época desconhecida: a própria ideia de Estado. O interesse do Monarca, que concentra em si os poderes legislativo, executivo e judicial, e cujo ministério tem origem divina, é tomado como o interesse dos seus súbditos, mas apenas indirectamente, e na medida em que se entenda que aquele não governa em função de si, mas daqueles, segundo as teorizações medievais acerca das virtudes de um Rei Justo, sendo que todas elas têm, inevitavelmente, origem em escolas teocráticas de pensamento político.
Neste contexto de profunda descentralização – e de não rara dessincronia entre o Rei e os seus representantes a nível local, bem como entre o primitivo poder central e as jurisdições que à sua revelia se constituíam– a auto-determinação do poder político passa por dois vectores fundamentais: na ordem externa, a independência face ao Império e ao Papado (o que vem a suceder com o ocaso da Respublica Christiana e a determinante Paz de Vestefália), na ordem interna, surpreendentemente, a separação de poderes, entendida num sentido diferente daquele vinculado por Montesquieu –  sendo um dos primeiros exemplos desta separação a tentativa, por parte do Monarca, de limitar os privilégios de foro, chamando a si o controlo jurisdicional sobre o próprio território e afastando entidades religiosas do exercício desse poder. No entanto, e regressando à questão fundamental, pode entender-se que a invocação da “vontade geral” por parte do Monarca Absoluto mais não é que um artifício. Afinal, sendo este o seu exclusivo intérprete, e concentrado em si os poderes a que nos referimos acima, vê-se o Príncipe dotado de todos os instrumentos necessários à prossecução de todos os fins, bastando para isso justifica-los como de interesse colectivo (podendo eventualmente relacionar-se a ideia de “Raison d´Ètat”).
Assim, e em consequência da requerida brevidade deste comentário, responde-se às questões enunciadas evocando a evolução histórica dos tipos de Estado e recorrendo à imperatividade do Princípio da Legalidade, não esquecendo que o administrado goza de tutela jurisdicional efectiva (artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa) e que, para além de subordinada à Lei – não esquecendo a própria Constituição -, a administração se subordina também aos tribunais para fiscalização dos seus actos. A própria evolução do Princípio da Legalidade que, como referido pelos professores André Salgado de Matos e Marcelo Rebelo de Sousa, ilustra a introdução progressiva do elemento democrático, que vem a culminar no conceito de preferência de lei. Assim, e da mesma forma, se justifica que o interesse público não possa, em princípio, ser arbitrariamente invocado ou indiscriminadamente retirado da norma, em princípio fruto da razoável ponderação do legislador, devendo ainda a administração fundamentar os actos administrativos, nos termos do artigo 152º do Novo Código de Procedimento Administrativo e gozando os particulares dos mecanismos constitucionalmente consagrados e que lhe permitem reagir contra a administração, não podendo nunca o "interesse público, como sucedido noutros contextos históricos, funcionar como válvula de escape para a actuação discricionária da administração, mesmo quando lhe seja concedido determinado espaço, pelo legislador, para a resolução de casos concretos, como apontado pelo Professor Rogério Soares. Não se tratará nunca de uma área livre de Direito, mas de um espaço de conformação por parte da administração, democraticamente legitimado, podendo os tribunais declarar o acto administrativo viciado, referindo-se a esse propósito as figura do desvio de poder, do erro de facto e do erro maniesto de apreciação. O conceito indeterminado de "interesse público" não é, assim, porta aberta para o arbítrio administrativo.

Filipa Lira Machado de Almeida, nº 28166

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