segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Evolução Histórica: Sistema Francês vs Sistema Inglês

O continente europeu foi palco nos séculos XVII e XVIII da eclosão de dois sistemas de matrizes opostas e que foram sendo referência para os diversos Estados, sendo eles: o sistema anglo-saxônico e o sistema continental, respetivamente. O primeiro tem como catalisador a Grande Revolução em Inglaterra de 1688 e o segundo, a Revolução Francesa de 1789. Inglaterra e França foram o berço para dar uma nova vida ao Direito Administrativo e o espelho para as restantes Nações se inspirarem. Os fatores que explicam a adoção de um dos sistemas podem ser variados, fazendo referência a três. No primeiro grupo podemos destacar: a proximidade geográfica sendo exemplos disso o País de Gales e a Irlanda; alguns países serem antigas colónias inglesas como os Estados Unidos (com exceção do Estado da Luisiana), Austrália, Nova Zelândia e Canadá; por último, países que estiveram na posse britânica como Hong Kong, Índia, Malásia, Singapura e África do Sul. A matriz continental teve por base o Direito Romano e os países que demonstraram uma afinidade tal como os do primeiro grupo pode ser explicada através da: proximidade geográfica existente e são exemplos disso Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Bélgica...; a herança francesa deixada nas suas antigas colónias como o Estado da Luisiana nos EUA, Costa do Marfim, Argélia, República Centro Africana; antigas colónias de Estados que adotaram esta via como Moçambique que era colónia portuguesa. Quantitativamente o número de países que aderiram ao sistema francês é muito maior do que aqueles que adotaram o sistema inglês, predominando em continentes inteiros como a América do Sul, à exceção do Guianda que é tipo saxão. Alguns autores criaram a possibilidade de existir um terceiro ramo que será o sistema soviético. Devido à sua forte ideologia e com características bastante vincadas idealiza-se um sistema distinto dos restantes. 
"Continentais" e "Anglo-Saxônistas" têm-se defrontado numa batalha ao longo das décadas, não só exaltando o seu sistema como criticando e desvalorizando o oponente. A doutrina é unânime em afirmar que ambas as revoluções foram fulcrais para o surgimento destes sistemas e que a eleição de cada país depende dos "princípios gerais que o informam (...) consoante a organização política e a índole social de cada um" como refere o Professor Marcello Caetano. Já Benito Castejon Paz y Emilio Rodrigues Roman seguem a mesma linha dizendo que tudo depende da situação "social e ideológica" de cada país. 
O primeiro confronto entre os autores diz respeito à designação da doutrina britânica. Comummente é designado como o sistema do "rule of law", sendo o pai desta expressão um dos maiores pensadores desta matéria Albert Venn Dicey, mais conhecido como Dicey. Segundo o autor seria o Império da Lei que existia no Reino Unido e pautava-se pela supremacia da lei à administração e a subordinação desta à anterior, e não na conferência de "prerrogativas" que atribuiam um caratér especial há administração e que a mesma devia de ser julgada pelos tribunais comuns e não por tribunais especiais. Na lógica de Dicey tudo se baseava no princípio geral da igualdade perante a lei. Segundo o mesmo este Direito apenas poderia funcionar em Inglaterra demonstrando a supremacia do sistema nacional  que seria o único compatível com o verdadeiro Estado de Direito, sendo o sistema francês ou o "Droit administratif" incompatível com esta forma de Direito. Foram vários os autores que incidiram sob Dicey e o seu pensamento. Começando pela escolha do nome para este sistema ("rule of law") muitos acreditam ser uma expressão errónea. A justificação que se encontra era a necessidade e o sentimento de patriotismo em enaltecer era tão forte que Dicey não explicou o seu conceito. Alguns teóricos acreditam que o "rule of law" não se pode opor ao " Droit administratif", mas sim o " rule of law special" que seria o Império da Lei especial que corresponderia neste caso ao Direito Administrativo. Uma segunda crítica é elaborada por Entrena Cuesta, segundo ele um dos erros do autor inglês foi em considerar o Direito Administrativo realidade apenas com a criação de tribunais especiais, quando na verdade a criação dos mesmos seria secundária, uma vez que o objetivo fulcral seria que a administração conseguisse através das "prerrogativas" atribuir garantias aos particulares. Maurice Hauriou também se une à critica a Dicey e indica que existe Estado de Direito em ambos os sistemas. Para a Hauriou a distinção dava-se na centralização do sistema continental e na descentralização do sistema da "rule of law", na carência de prerrogativas do lado britânico e na não existência de privilégios do lado francês e por último na existência de tribunais especiais no sistema de matriz romana e de tribunais na existência de tribunais comuns na matriz saxônica. 
Como caracterização do sistema inglês podemos tomar a elaborada por Dicey e como do sistema francês vamos guiar-nos pela de Fernando Garrido Falla  que tem por definição El régimen administrativo francés se caracteriza, de una parte, por la existencia de un conjunto de normas jurídicas aplicables a la Administración, que se constituyen como un Derecho especial, autónomo e independiente del Derecho común o civil, de otra, en la existencia de una jurisdicción administrativa distinta y separada de los Tribunales ordinarios.  O autor refere que a esta definição deve adicionar-se um terceiro traço de De Laubadere que corresponde la noción de servicio público, pues el régimen administrativo no se aplica indiferentemente a cualquier especie de actividad administrativa, sino precisamente a aquella que constituye actividad de servicio público. 
Para distinguir ambos os sistemas utilizaremos a doutrina do Professor Vasco Pereira da Silva que elenca três fatores: a existência ou não de Direito Administrativo; se este Direito se baseia num sistema de autotutela ou de heterotula; se a administração é julgada nos tribunais ordinários ou especiais. 
Começando pelo primeiro ponto, este foi bastante discutido e deu origem a uma discussão bastante acesa no século XX entre Dicey da Inglaterra e Hauriou da França. Dicey negava a existência da administração em Inglaterra e Hauriou defendia a existência do mesmo em França e que este seria um sistema superior ao britânico. A análise da sua existência não pode ser meramente teórica, mas prática e analisar os acontecimentos. Com a revolução burguesa de 1789 nasceu a ideia de separação de poderes. A França testemunhou durante anos uma concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, o monarca. Com um poder ilimitado e inigualável na sua figura repousavam os três poderes idealizados por Montesquieu: poder judicial, poder executivo, poder legislativo.  Com a revolução os franceses conceberam uma nova filosofia e denominaram-na como separação de poderes que consistiria no seguinte: os três poderes estariam em três órgãos diferentes, trabalhando em esferas autónomas e independentes. Porém um grave erro foi cometido. Se no Estado Absoluto o Rei seria a última instância e neste caso seria ele que sentenciara a última decisão, no Estado Liberal seria o Estado. Maquiavel criou a figura de um Estado ilimitado que estaria por detrás de todo o poder político e era este Estado a quem incumbia a última palavra. Em Inglaterra, os acontecimentos foram sucedendo com normalidade. Se em França foi necessário um corte abrupto com o passado, no Reino Unido a transição foi normal. Predomina uma designação de divisão de poderes que se opõe há separação de poderes francesa. Na Inglaterra existe apenas um único órgão que controla os diversos poderes, mas os mesmos são aplicados autonomamente. Estas ideologias tiveram repercussões na criação e aplicação do Direito Administrativo. Devido às vicissitude históricas, os franceses tinham pavor à concentração de poderes chegando a afirmar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 no artigo 16º que: toda a sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação de poderes determinada não tem Constituição, a administração francesa foi idealizada como sendo a própria que se administrara e julgara a si própria. O Professor Vasco Pereira da Silva designa esta fase como "pecado original". O que estava em causa seria uma "promiscuidade entre administração e justiça". O juiz seria administrador e o administrador seria juiz, logo a óptica de separação de poderes claramente não era respeitada. Em Inglaterra isto não aconteceu, já que os tribunais comuns poderiam julgar a administração, mas com o passar dos anos os ingleses foram eles também tendo tribunais especializados e chegaram a sofrer desta promiscuidade, tal como os franceses. 
Outro fator a ter em conta sobre a existência ou não de Direito Administrativo refere-se às fontes de cada sistema. Em França existe um predomínio da legislação, enquanto que no Reino Unido as fontes eram o costume e a jurisprudência o que significava que ambas seriam iguais para todos os cidadãos, logo não existiria um direito que fosse especial e mais uma vez o Direito Administrativo era negado e em território da Coroa. Esta seria a realidade dos séculos XVIII e XIX, traçada por uma enorme divisão entre os dois sistemas com características próprias e traços marcantes. Contudo, deve-se referir que ainda se estava no inicio do Direito Administrativo e que um longo caminho ainda teria que ser percorrido. No século XX, com a passagem para o Estado Social existe a necessidade de no Reino Unido a criação de leis que regulavam a administração pública a nível económico, social e cultural. Logo, são leis positivadas que passam a regular a administração e não normas costumeiras ou jurisprudências. Verificando-se assim, uma aproximação entre os dois sistemas.  Actualmente, pode-se afirmar que existe  Direito Administrativo em ambos os  países, contudo a forma como existem são diferentes. Em França temos normas completas, positivadas que se esgotam, predomina um sistema legalista. Em Inglaterra, pode-se afirmar tal como diziam Paz y Roman um Derecho Administrativo, en sentido proprio y específico, tal como lo advertian Allen, Port, Carr, Jenings, Lord Hewart onde temos normas gerais que se associam às restantes fontes de Direito. Continua a existir costume na administração, mas tenta-se que não hajam precedentes judiciais e que os mesmos não criem Direito. 
O segundo fator prende-se em saber se existe autotutela ou heterotutela. Os pais destas expressões são dois autores italianos administrativas, Massimo Severo Giannini e Santi Romano. A diferença consiste no seguinte: se a administração tem poderes para fazer valer as suas decisões sem ter que recorrer a outros órgãos, falamos em autotutela. Se pelo contrário, para fazer valer as mesmas tem que recorrer a outros meios fala-se de heterotutela. Falar em autotutela ou heterotutela não significa que a administração tenha a possibilidade coativa de fazer valer as suas decisões. Dizer que a administração age de forma coativa, significa que a administração impõem as suas decisões aos particulares pelo uso da força. Um dos princípios basilares do sistema administrativo é o principio da legalidade. A administração, apenas pode fazer o que a lei lhe permite. A administração tem tantos poderes quanto aqueles que resultam da lei. Não goza de privilégios ou de normas especiais, apenas de uma tipificação taxativa. Assim, a relação entre a administração e os particulares resulta da lei e a grande maioria dos atos que a administração concretiza, resulta de iniciativa particular, logo e seguindo o Professor Vasco Pereira da Silva, não se pode falar em prévia execução coativa da administração. Catapultando esta distinção para os dois sistemas, o francês caracteriza-se por uma autotutela enquanto que o inglês por uma heterotutela. Isto significa que: em primeiro lugar a administração apenas recorre à sua execução quando o particular não cumpre o que foi estipulado e a mesma apenas pode agir dentro dos limites da lei, sendo o caso francês, por oposição o caso inglês, indica que quando o particular não cumpre, a administração deverá de recorrer ao tribunal para o obrigar a cumprir. Maurice Hauriou esboçava uma crítica ao sistema inglês e dizia que o mesmo não funcionava, uma vez que antes de ir apagar um fogo primeiro teria que se pedir autorização ao tribunal para tal. Isto era ridículo, uma vez que numa situação de estado de necessidade qualquer um poderia interferir na propriedade de terceiro para apagar o incêndio. O Professor Freitas do Amaral tem como traço distintivo do lado francês e britânico a execução judicial das decisões que consegue ser explicada através do exemplo anterior. O Professor Vasco Pereira da Silva não concorda com a mesma. No inicio do século XX, os dois sistemas aproximaram-se isto porque os administrativas francesas começaram a perceber que a autotutela não seria compatível com o sistema e os administrativistas ingleses devido ao surgimentos dos tribunals começam a gozar de uma certa autotutela. Atualmente, pode dizer-se que o sistema francês ainda se pauta pela autotutela, mas só nos termos em que a lei o permite e o sistema inglês ainda se caracteriza por uma lógica bastante acentuada de heterotutela, podendo  este fator ser meramente quantitativo. 
O último ponto diz respeito ao surgimento de tribunais especiais ou não. Em França falava-se inicialmente de instituições com poderes especiais para julgar a administração, enquanto que na Inglaterra inicialmente a administração era julgada por tribunais comuns. No século XX, as instituições francesas transformam-se em autênticos tribunais para julgar, enquanto que na Inglaterra os tribunals com poderes para julgar a administração originam uma promiscuidade entre administração e justiça que anteriormente tinha existido em solo francês. Em França, existe uma especialização em todas as instâncias em relação à administração: temos os tribunais administrativos, seguidamente os tribunais centrais administrativos e por último o Supremo Tribunal Administrativo, existindo uma especialização da base até ao topo. Em Inglaterra, apesar de muitos negarem ou desconhecerem, existe um especialização na primeira instância que é o Administrative Court integrado no High Court. O High Court é um tribunal especializado de primeira instância que depois o recurso das decisões vai para o Lord´s Justice que está na House of Lords. Assim, na Inglaterra apenas se pode falar numa especialização na base do sistema judicial inglês. 
Concluindo,  pelas palavras de Entrena Cuesta pode afirmar-se que nos primórdios do Direito Administrativo a distinção entre os dois sistemas parecia ser clara, mas com o passar do tempo ambos foram ganhando características do seu oponente o que fez com que a distinção não se tornasse tão nítida, porque segundo o professor o "rule of law" entrou em crise, para demonstrar exibe três momentos: 1) a existência da chamada " hipertrofia da Administração local inglesa" expressão utilizada por Garcia de Enterria que consistia na perda da importância local devido ao surgimento de distritos urbanos e rurais, da vigilância e controlo da Administração estatal em relação à local com prejuízo dos "self-goverment" das localidades inglesas; 2)  a existência de bastantes prerrogativas iguais ao sistema continental; 3) criação e aumento de tribunais administrativos. Assim, pode-se concluir que as diferenças entre ambos os sistemas são puramente quantitativas. 



Bibliografia:
AMARAL, Freitas do, Curso de Direito Administrativo; Volume I; 4ª edição; 2015; Almedina; § 1 - III Os Sistemas Administrativos de Direito Comparado, páginas 87-109. 
CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo; Volume I; 4ª edição; 2013; Almedina; § 1 - O sistema administrativo. 
FALLA, Fernando Garrido, Tratado de Derecho Administrativo;  Novena edição; Volume 1; Madrid, 1985, páginas 116-131.
PAZ, Benito Castejon y Emilio Rodrigues Romam, Derecho Administrativo y Ciencia de la Administración; Tomo I; Parte General; 2ª edición, Ediciones; páginas 48-53.
SILVA, Vasco Pereira da, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Tese de doutoramento. 

Catarina Nogueira Toscano - 28254

Sem comentários:

Enviar um comentário