quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Que(m) é o órgão?

Como é comum dizer-se, a pessoa coletiva, seja de Direito Público ou Privado, não tem, naturalmente (como a pessoa física), vontade ou agir próprio, estando antes dependente dos seus órgãos para construir essa vontade e agir de acordo com a mesma. Questão diferente e quanto à qual não houve, durante muito tempo, resposta unânime, é a de saber o que é um órgão.
O Professor Marcello Caetano, numa nota de rodapé do seu manual de Direito Administrativo, resumia o debate doutrinal de então (deixando transparecer, claramente, a sua posição) do seguinte modo: “A grande oposição é entre os que consideram o órgão um centro objetivo de poderes, uma instituição, e os que o confundem com os respectivos titulares.”. Do outro lado da barricada encontravam-se, nomeadamente, os Professores Marques Guedes e Afonso Queiró.
Portanto, para o primeiro Professor, “Órgão é o elemento da pessoa colectiva que consiste num centro institucionalizado de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou pelo colégio de indivíduos que nele estiverem providos com o objectivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa colectiva”, enquanto para os segundos o órgão é sempre, em última análise, a pessoa física, constituindo os respetivos poderes funcionais a sua competência.
Vejamos alguns argumentos de ambas as partes:
Em abono da tese institucionalista poder-se-ia dizer que, embora os indivíduos titulares do órgão possam mudar frequentemente, este permanece sempre o mesmo; “Assim, se o órgão se funde na pessoa colectiva como elemento essencial da sua constituição, já o mesmo não acontece com as pessoas singulares que são suportes dos orgãos”. A situação pode, contudo, ser vista noutra perspetiva: “Nos países latinos sobretudo, onde as reformas orgânicas amiudadas são de regra, acontece frequentíssimas vezes o contrário: é o serventuário que sobrevive às configurações sucessivas do cargo ou lugar, que o acompanha nas suas caprichosas deslocações de hierarquia para hierarquia funcional, ou que, extinto ele, acaba por ser transferido para quadro diverso”.
Voltando à primeira tese, note-se que o indivíduo apenas faz uso dos ditos poderes funcionais quando age em nome do órgão e em funções do mesmo; de resto, mantém a sua personalidade e poderá ter também relações com a pessoa coletiva, que o emprega, em que surge como indivíduo, não como órgão. Devolvendo a palavra aos defensores da segunda tese, estes fazem o Professor Marcello Caetano cair em contradição na sua definição de ato administrativo. Dizia este Professor: “acto administrativo é a conduta voluntária de um órgão da Administração”, podendo essa conduta constituir uma ação ou omissão. De facto, para agir, para adotar uma conduta, não basta um centro institucionalizado de poderes funcionais (seria mesmo preciso uma pessoa física).
O tempo veio a fazer prevalecer a tese institucionalista do Professor Marcello Caetano. O CPA define, no seu artigo 20º número 1, órgãos como “centros institucionalizados titulares de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva”.
O Professor Freitas do Amaral vem recuperar as duas teorias, reconhecendo verdade em ambas, desde que devidamente circunscritas. A teoria institucionalista deveria valer quando estudamos o Direito Administrativo do ponto de vista da organização administrativa; já a teoria individualista (ou pessoalista, talvez) valeria numa perspetiva da atividade administrativa.
Parece-nos, contudo, que mesmo olhando à Organização, a recondução do órgão à pessoa física pode ser útil. Assim, a propósito dos governadores civis, o Professor Freitas do Amaral refere que, em 2011, estes foram exonerados, sem que se nomeassem substitutos e ficando os lugares vagos. A extinção deste órgão seria impossível, dado o artigo 291º número 3 da CRP, mas este Professor entende que a não nomeação dos governadores civis resulta igualmente numa inconstitucionalidade, pois “o Governo tem a obrigação constitucional de nomear os governadores civis e de não lhes sonegar, pelo menos, as competências que a Constituição expressamente lhes atribui”. A tese dos Professores Afonso Queiró e Marques Guedes, na nossa opinião, poderá reforçar esse argumento: um órgão não é simplesmente um feixe de poderes que podem ser repartidos por outros órgãos e serviços do Estado, antes devendo ser reconduzido a uma pessoa física que, neste caso, deveria ter sido nomeada e devia ser diferente da pessoa do Ministro da Administração Interna.

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo I, 4.ª ed., 2015;

CAETANO, Marcello – Manual de Direito Administrativo I, 9.ª ed., 1970;

GUEDES, Armando Marques – Direito Administrativo, 1956.


Francisco Ferreira, nº28134

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