As Razões e os Limites
do Fenómeno de Verwaltungsprivatrecht
O
conceito de Verwaltungsprivatrecht
(traduzido para português como o "Direito Privado da Administração")
nasceu na doutrina alemã, no final do século XX, na obra de dois juspublicistas
- H.J. Wolff e Wolfgang Siebert.
Em
Portugal, também o professor LUÍS CABRAL DE MONCADA fala de uma "privatização formal" sempre que a
Administração Pública se socorra de mecanismos jus-privatísticos para a sua
organização e actuação. Já a professora MARIA JOÃO ESTORNINHO introduz no
ordenamento jurídico a expressão "fuga
para o Direito Privado" para denominar o fenómeno de afastamento
parcial do Direito Administrativo enquanto regulador da actividade
administrativa devido às vinculações severas que o mesmo impõe. Na sua tese de
Mestrado, RAONI BIELSCHOWSKY analisa também este aparecimento de um "Direito Privado especial da Administração"
como essencial nos casos em que o Direito Público (nomeadamente, o Direito
Administrativo) se apresenta não como um instrumento, mas sim como um obstáculo
à actividade administrativa.
Assim,
a professora Maria João Estorninho lista as seguintes razões para o
aparecimento do Verwaltungsprivatrecht:
(i)
Maior autonomia e agilidade da actuação
da Administração Pública. Esta forma privatística de actuação acaba por facilitar
a relação da Administração Pública com os particulares, passando esta a ser
caracterizada por uma maior liberdade e igualdade.
(ii)
Possibilidade de adopção de processos de
decisão e actuação mais flexíveis. Fala-se a este respeito de uma maior
eficiência e, simultaneamente, menor burocratização da Administração Pública. A
noção de que cabe à Administração procurar os meios mais adequados e racionais
para a prossecução do interesse público - corolário do princípio da eficiência
- foi denominado pela doutrina italiana como o «princípio da boa Administração». O princípio da eficiência na
Administração (de natureza económica) tem acolhimento na nossa Constituição nos
artigos 81º/c e 267º/2 CRP. Sobre os benefícios da desburocratização, diz
Bielschowsky que "a
desburocratização da actividade administrativa gera uma melhor qualidade e
menos dispendioso desempenho no sector público, tornando-o mais dinâmico e,
portanto, mais eficiente."
(iii)
Menor influência político-partidária.
(iv)
Sujeição à economia de mercado e
condições de plena concorrência. Mais uma vez, aliada ao princípio da maior
eficiência.
(v)
Simplificação das relações contratuais.
Nomeadamente, o caso dos concursos públicos para contratação de trabalhadores.
É
interessante notar, como salienta o professor Luís Cabral de Moncada que "quando as entidades empresariais públicas
dotadas de personalidade jurídica privada (sociedades de capitais públicos e
sociedades de capitais mistos) utilizam Direito Privado, não se trata de uma
«fuga», pois que o ordenamento-regra regulador destas actividades é justamente
o Direito Privado".
Apesar
de tudo, nesta opção pelo uso de institutos típicos do Direito Privado, a
"fuga do Direito Administrativo" nunca poderá ser integral, pois a
Administração continuará sempre (mesmo que parcialmente) vinculada à
prossecução do interesse público e aos direitos e princípios constitucionais,
principalmente, à igualdade e à imparcialidade.
Desta
forma, podemos apontar a existência de quatro principais limitações à escolha
do Direito Privado por parte da Administração:
(1)
O interesse público. Como aponta a professora Maria João Estorninho "o interesse público é indissociável de toda
e qualquer actividade administrativa". A consagração deste limite está
presente no art.266ºCRP e no art.4ºCPA, através da definição de interesse
público como fim último da Administração Pública. Nota a mesma professora que
"quando o interesse prosseguido seja
o interesse privado de um particular, tratar-se-á de um caso de corrupção".
(2)
A legalidade. Mais uma vez, o princípio da legalidade surge como um limite à
actividade administrativa. Entenda-se que esta legalidade deve remeter não só a
uma vinculação à lei, mas também a uma vinculação ao próprio Direito enquanto
bloco de legalidade.
(3)
Os Direitos Fundamentais. Este limite resulta claramente do art.18ºCRP,
afirmando sobre o assunto a professora Maria João Estorninho: "A Administração Pública em caso algum deixa
de estar sujeita ao seu regime próprio de vinculação aos Direitos Fundamentais.
[…] Na realidade, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, julgo
que, quanto mais se generaliza a actividade administrativa de direito privado,
mais frequentes são as ocasiões para eventuais atropelos aos direitos
fundamentais dos cidadãos".
(4)
A sujeição a regras procedimentais e jurisdição administrativa. Este limite
resulta directamente da natureza, propósito e estrutura da Administração e
aplica-se, maioritariamente, a casos de celebração de contractos: "Mesmo na firmação de contrato eminentemente
de Direito Privado, a vontade contratual da Administração deverá ser obtida
através de um procedimento preliminar", mormente um concurso público.
Bielschowsky
afirma que "se é verdade que a
utilização do Direito Privado pela Administração é válida, na medida em que
signifique a sua desburocratização e maior fluência da actividade
administrativa, por outro lado, ela não pode significar uma fuga das
vinculações essenciais que devem pautar a actuação da Administração Pública,
sob pena de se caracterizar como uma «fuga do próprio Direito» ".
Cabe
concluir dizendo que, apesar de se poder falar, hoje em dia, de uma cada vez
maior diluição da clássica dicotomia entre Direito Público e Privado, não deixa
de se dever limitar o âmbito de aplicação de um e outro, especialmente no seio
da actividade administrativa, sob risco de esta se caracterizar pela
discricionariedade ilimitada.
Inês Carôla Cavaco
Nº
28184
Bibliografia:
- BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. A Privatização da Administração Pública.
Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009.
- ESTORNINHO, Maria João. A Fuga para o Direito Privado: Contributo
para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública.
Coimbra: Almedina, 1996.
- FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo - Volume I.
Coimbra: Almedina, 2015.
- MONCADA, Luís Cabral. "A Administração Pública, a
privatização e o Direito Privado" in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando Marques Guedes.
Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004.
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