quarta-feira, 23 de novembro de 2016

As Razões e os Limites do Fenómeno de Verwaltungsprivatrecht
O conceito de Verwaltungsprivatrecht (traduzido para português como o "Direito Privado da Administração") nasceu na doutrina alemã, no final do século XX, na obra de dois juspublicistas - H.J. Wolff e Wolfgang Siebert.
Em Portugal, também o professor LUÍS CABRAL DE MONCADA fala de uma "privatização formal" sempre que a Administração Pública se socorra de mecanismos jus-privatísticos para a sua organização e actuação. Já a professora MARIA JOÃO ESTORNINHO introduz no ordenamento jurídico a expressão "fuga para o Direito Privado" para denominar o fenómeno de afastamento parcial do Direito Administrativo enquanto regulador da actividade administrativa devido às vinculações severas que o mesmo impõe. Na sua tese de Mestrado, RAONI BIELSCHOWSKY analisa também este aparecimento de um "Direito Privado especial da Administração" como essencial nos casos em que o Direito Público (nomeadamente, o Direito Administrativo) se apresenta não como um instrumento, mas sim como um obstáculo à actividade administrativa.
Assim, a professora Maria João Estorninho lista as seguintes razões para o aparecimento do Verwaltungsprivatrecht:
(i) Maior autonomia e agilidade da actuação da Administração Pública. Esta forma privatística de actuação acaba por facilitar a relação da Administração Pública com os particulares, passando esta a ser caracterizada por uma maior liberdade e igualdade.
(ii) Possibilidade de adopção de processos de decisão e actuação mais flexíveis. Fala-se a este respeito de uma maior eficiência e, simultaneamente, menor burocratização da Administração Pública. A noção de que cabe à Administração procurar os meios mais adequados e racionais para a prossecução do interesse público - corolário do princípio da eficiência - foi denominado pela doutrina italiana como o «princípio da boa Administração». O princípio da eficiência na Administração (de natureza económica) tem acolhimento na nossa Constituição nos artigos 81º/c e 267º/2 CRP. Sobre os benefícios da desburocratização, diz Bielschowsky que "a desburocratização da actividade administrativa gera uma melhor qualidade e menos dispendioso desempenho no sector público, tornando-o mais dinâmico e, portanto, mais eficiente."
(iii) Menor influência político-partidária.
(iv) Sujeição à economia de mercado e condições de plena concorrência. Mais uma vez, aliada ao princípio da maior eficiência.
(v) Simplificação das relações contratuais. Nomeadamente, o caso dos concursos públicos para contratação de trabalhadores.
É interessante notar, como salienta o professor Luís Cabral de Moncada que "quando as entidades empresariais públicas dotadas de personalidade jurídica privada (sociedades de capitais públicos e sociedades de capitais mistos) utilizam Direito Privado, não se trata de uma «fuga», pois que o ordenamento-regra regulador destas actividades é justamente o Direito Privado".
Apesar de tudo, nesta opção pelo uso de institutos típicos do Direito Privado, a "fuga do Direito Administrativo" nunca poderá ser integral, pois a Administração continuará sempre (mesmo que parcialmente) vinculada à prossecução do interesse público e aos direitos e princípios constitucionais, principalmente, à igualdade e à imparcialidade.
Desta forma, podemos apontar a existência de quatro principais limitações à escolha do Direito Privado por parte da Administração:
(1) O interesse público. Como aponta a professora Maria João Estorninho "o interesse público é indissociável de toda e qualquer actividade administrativa". A consagração deste limite está presente no art.266ºCRP e no art.4ºCPA, através da definição de interesse público como fim último da Administração Pública. Nota a mesma professora que "quando o interesse prosseguido seja o interesse privado de um particular, tratar-se-á de um caso de corrupção".
(2) A legalidade. Mais uma vez, o princípio da legalidade surge como um limite à actividade administrativa. Entenda-se que esta legalidade deve remeter não só a uma vinculação à lei, mas também a uma vinculação ao próprio Direito enquanto bloco de legalidade.
(3) Os Direitos Fundamentais. Este limite resulta claramente do art.18ºCRP, afirmando sobre o assunto a professora Maria João Estorninho: "A Administração Pública em caso algum deixa de estar sujeita ao seu regime próprio de vinculação aos Direitos Fundamentais. […] Na realidade, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, julgo que, quanto mais se generaliza a actividade administrativa de direito privado, mais frequentes são as ocasiões para eventuais atropelos aos direitos fundamentais dos cidadãos".
(4) A sujeição a regras procedimentais e jurisdição administrativa. Este limite resulta directamente da natureza, propósito e estrutura da Administração e aplica-se, maioritariamente, a casos de celebração de contractos: "Mesmo na firmação de contrato eminentemente de Direito Privado, a vontade contratual da Administração deverá ser obtida através de um procedimento preliminar", mormente um concurso público.
Bielschowsky afirma que "se é verdade que a utilização do Direito Privado pela Administração é válida, na medida em que signifique a sua desburocratização e maior fluência da actividade administrativa, por outro lado, ela não pode significar uma fuga das vinculações essenciais que devem pautar a actuação da Administração Pública, sob pena de se caracterizar como uma «fuga do próprio Direito» ".
Cabe concluir dizendo que, apesar de se poder falar, hoje em dia, de uma cada vez maior diluição da clássica dicotomia entre Direito Público e Privado, não deixa de se dever limitar o âmbito de aplicação de um e outro, especialmente no seio da actividade administrativa, sob risco de esta se caracterizar pela discricionariedade ilimitada.
Inês Carôla Cavaco
Nº 28184
Bibliografia:
- BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. A Privatização da Administração Pública. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009.
- ESTORNINHO, Maria João. A Fuga para o Direito Privado: Contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1996.
- FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo - Volume I. Coimbra: Almedina, 2015.
- MONCADA, Luís Cabral. "A Administração Pública, a privatização e o Direito Privado" in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando Marques Guedes. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004.

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