sábado, 5 de novembro de 2016

O CIDADÃO, A ADMINISTRAÇÃO E A DELEGAÇÃO DE PODERES


SUMÁRIO: I- Introdução; II- Modo orientador do agir administrativo- Coordenadas; III- A delegação de poderes como consequência da desconcentração; IV- A delegação de poderes vista de vários prismas; V- O CPA e a delegação de poderes; VI- Primado da Lei e requisitos; VII- Vícios e sanção; VIII- Conclusão.

I- Introdução

A característica que enforma todo o agir administrativo assenta na prossecução do interesse público que tem por base interesses legalmente protegidos e direitos dos cidadãos.[1] Ao abrigo deste paradigma a Administração tende a estruturar-se de forma a evitar a exclusão, a burocratização e quaisquer medidas que afastem o relacionamento do cidadão da Administração[2].
A relação que se estabelece entre administrado e administração é semelhante a um diálogo. Por isso, urge a necessidade de consagrar dois princípios orientadores para a acção administrativa, a saber: o princípio da descentralização e o princípio da desconcentração – sendo que o segundo princípio é o mais relevante para o nosso tema.

II- Modo orientador do agir administrativo - Coordenadas
O princípio da descentralização radica na ideia de que a pessoa colectiva Estado atribui a outras pessoas colectivas tarefas (normas de atribuição) de forma a prosseguir da melhor forma as suas tarefas. Um exemplo possível pode ser a atribuição de tarefas prosseguidas pelo Ministério da Saúde (Administração Directa Central) à pessoa colectiva das Administrações Regionais de Saúde, I.P. (Administração Indirecta sob forma de Instituto Público).
O princípio da desconcentração parte da ideia de que os poderes, normas de competência, que advém das tarefas a prosseguir pela respectiva pessoa colectiva sejam repartidos pelos diversos órgãos da pessoa colectiva.
A CRP consagra explicitamente uma forma de desconcentração a hierarquia administrativa prevista na alínea d, do art. 199º e nos números 2 e 3 do artigo 271º.   Pese embora, que a referência efectuada no art. 111º, nº2 implicitamente faça referência a uma outra forma de desconcentração.
A hierarquia administrativa pode ser explicada por referência a uma pirâmide em que o topo da pirâmide, o centro de decisão, pertence ao órgão ou agente administrativo que dirige e guia a actuação dos demais subalternos tendo por base o poder de obediência – sempre dentro da mesma unidade de atribuições. Esta actuação consolida-se no entender do Senhor Professor Paulo Otero no princípio democrático da legitimidade ascendente.

III- A delegação de poderes como consequência da desconcentração;
A delegação de poderes é uma forma de desconcentração e distancia-se da hierarquia administrativa por ser uma forma de desconcentração derivada. A delegação de poderes não resulta directamente da CRP, mas decorre de uma habilitação legal no qual a lei dita quais as competências que podem ser delegáveis no órgão ou agente administrativo.
A decorrente análise à figura da delegação de competências permite-nos distinguir duas situações: a primeira em que a lei atribui directamente, de forma perfeita, a delegação de poderes; e no outro caso o próprio órgão goza de discricionariedade o que lhe permite escolher qual a melhor forma de prosseguir o interesse público naquela decisão – nesta situação um dado órgão X (delegante), pode escolher realizar essa competência ou delegá-la num órgão Y (delegado).

IV- A delegação de poderes vista de vários prismas;
Marcello Caetano na sua obra “Princípios Fundamentais de Direito Administrativo” define o conceito de delegação de poderes como “o acto pelo qual um órgão normalmente competente para a prática de certo acto jurídico autoriza um órgão ou agente administrativo, indicado por lei, a praticá-lo também”. Este autor aponta como requisitos à delegação de poderes: a permissão da lei, a habilitação por parte de dois órgãos ou agentes administrativos da mesma pessoa coletiva, um delegante e outro eventualmente competente (delegado), e por fim a publicidade – o acto de delegação de poderes deve ser assim escrito, expresso e publicitado.
A doutrina inicialmente, quanto ao modo da compreensão da delegação de poderes, acolheu a tese da transferência ou alienação de competência e tem como defensor o Professor Rogério Soares. Todavia, o facto de B (delegado) alienar a competência que A (delegante) lhe atribuiu geraria um problema pois ao falar-se da alienação da competência por B. O órgão ou agente A não poderia chamar a si a competência por meio de revogação ou avocação.
A segunda tentativa de explicação incidia na tese de autorização, e é encetada pelo Professor Marcello Caetano, a priori antes da delegação B (delegado) já seria competente para a prática do acto. Deste modo, a delegação permitiria o exercício de uma competência que já seria inicialmente de B. A competência de B teria de ter sempre em conta os requisitos da delegação pelo que teria sempre de haver uma lei de habilitação para a decisão sob pena de vício de forma.
A terceira tentativa de explicação surge-nos pela pena do Professor Diogo Freitas do Amaral sendo reconhecida como a tese de transferência do exercício da delegação. Nesta tese pelo acto de delegação de poderes, seria simultaneamente transferido o exercício de poderes de A para B – pese embora A mantenha a titularidade.
 Por conseguinte, A teria a titularidade e B o exercício da competência. Todavia, de acordo com a quarta concepção de delegação de poderes, preconizada pelo Professor Paulo Otero, esta tese seria derrubada pois A nunca poderia perder a faculdade de orientar os poderes de B – deste modo estaria a ser violado o princípio da legalidade na vertente da competência.
A mais recente concepção da delegação de poderes cunhada pelo Professor Paulo Otero é a tese da titularidade vazia. Nesta concepção a lei habilitante teria por consequência dois efeitos: o delegante assumiria a titularidade e o exercício e ao delegado seria conferida a titularidade. Deste modo, antes do acto habilitante, que teria de citar a lei de habilitação, faria com que B tivesse uma espécie de titularidade vazia que se tornaria perfeita com a delegação de poderes. Assim, o que estaria em causa seria o alargamento da titularidade.
A delegação de poderes pode ainda conter mais do que uma delegação podendo haver uma delegação em cascata, ou seja, uma delegação e respectiva subdelegação desde que não contrarie o disposto em Lei Habilitante.

V- O CPA e a delegação de poderes;
A delegação de poderes encontra-se prevista no CPA, nos arts. 44º a 50º. O CPA de 2015 consagra uma inovação face ao CPA de 1991 a possibilidade de ocorrer delegação de poderes em relações inter-subjectivas em contra-senso com a lógica do CPA de 1991 que permitia somente delegação de poderes em matéria de ralações inter-orgânicas – o que em bom rigor não coloca problemas no âmbito da legalidade uma vez que seria sempre necessária a citação da lei habilitante para a prática do acto de delegação. Não estaremos propriamente no âmbito do princípio da desconcentração, mas sim no principio da descentralização?
O número 3, do art. 44º consagra a delegação de poderes no exercício de uma relação hierarquizada pelo que nestas situações não é necessária uma lei habilitante – esta relação diz-se uma relação intuitu personae – sendo a única excepção no articulado correspondente à delegação de poderes. A culminar o art. 44º, o número 5, releva para efeitos contenciosos e a nível de responsabilidade civil pessoal por meio do princípio da desconcentração e da verdade material para responsabilizar o autor do acto de delegação, o agente ou órgão que teria a competência em sentido perfeito.
O art. 45º estabelece que existem poderes indelegáveis, este preceito, será de difícil percepção uma vez que apenas sob a lei habilitante se pode permitir a delegação o que torna somente o permitido legal. No entender do Professor Sérvulo Correia[3] o facto de o CPA ser uma lei sem parametricidade material reforçada leva a que seja possível derrogar a alínea a por meio de um outro documento legislativo. Ao mesmo tempo parece que para efeitos de revogação (acto de extinção que habilitou a delegação de competências) ou avocação (tornar a competência ao delegante no caso concreto) não fizesse sentido compreender que o delegante continua-se num cenário de delegação total a poder exercer estas faculdades. A Alínea c visa respeitar o princípio da competência territorial de modo a que não exista violação ou intromissão numa outra pessoa ou agente diferente.

VI- Primado da Lei e requisitos;
 O acto de delegação de poderes deve citar sempre a lei habilitante de modo a que sejam especificados os poderes, a norma atributiva e a norma que habilita o órgão a delegar, sendo estes um requisito de validade. Por outro lado, existe um dever de publicação do respetivo acto nos termos do art. 159º sob pena de ineficácia (número 2, art. 48º) ou até de usurpação da função pública.

VII- Vícios e sanção;
O art. 48º/1 diz-nos que a falta da qualidade de delegado ou subdelegado na prática do acto estabelece o desvalor de irregularidade e consequentemente a sanção de ineficácia.

VIII- Conclusão
Em suma, a delegação de poderes é a pedra basilar e o garante da efetivação do princípio da desconcentração.


Maria Matos de Almeida,
nº 28553

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo - Volume I, Almedina, Coimbra, 2015;
CAETANO Marcello, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Almedina, 2008.
SOUSA, Marcelo Rebelo de, MATOS, André Salgado, Manual de Direito Administrativo, Tomo I, Dom Quixote, 2008;
QUADROS, FAUSTO, etal, Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Almedina, Lisboa, 2016.




[1] Cf. Art. 266º, nº 1
[2] Cf. Art. 267º, nº 1
[3] QUADROS, FAUSTO, etal, Comentários à Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Almedina, Lisboa, 2016, p. 94-97.

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