terça-feira, 1 de novembro de 2016

As Fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado: Um Direito Misto?

    Através da introdução ao estudo do Direito Administrativo deparamo-nos, desde logo, com a seguinte questão: quais são as fronteiras que separam o direito público e o direito privado? Podemos realmente afirmar que existe algo que os separa?

   No decorrer dos tempos, muitos foram os autores que se debruçaram sobre este tema, na tentativa de encontrar uma resposta que se ajuste à realidade e seja esclarecedora para esta problemática. Pretendo, assim, com base no esforço dos vários intelectuais que dedicaram parte do seu tempo a esta questão, procurar transmitir as posições que foram capazes de resistir à passagem do tempo e às inúmeras discussões doutrinárias que pudessem surgir, atribuindo, por fim, a minha opinião face à situação descrita.

   Antes de entrar em detalhes, necessário será dizer que Vieira de Andrade soube identificar que entre o direito público e o direito privado existem, de facto, "fronteiras movediças". Não há dúvidas que as formas publicísticas e privatistas cruzam-se e entrelaçam-se num dado momento. É a partir desta realidade inconstante que Madiot questiona-se acerca do seguinte: "Não é tudo misto em direito público e em direito privado?" Tendo em conta a questão, estaria o ilustre professor francês longe da verdade?

   De forma a resolver esta incógnita, considero relevante atender a alguns aspetos que a atual doutrina refere como instrumentos de distinção entre os dois ramos.

   A primeira ferramenta a referir será o seu objeto, uma vez que enquanto o direito privado se ocupa das relações estabelecidas pelos particulares na vida privada, o direito administrativo ocupa-se da administração pública e das relações de direito público que se travam entre ela e outros sujeitos de direito, nomeadamente os particulares. Apesar de já ter sido desenvolvido pela doutrina ao longo dos anos, o "critério da qualidade dos sujeitos" foi, durante muito tempo, alvo de polémicas animadas, especialmente pela razão dos entes públicos também poderem atuar segundo as normas de direito privado. Quanto a este aspeto, inevitavelmente tornar-se-á fundamental desdramatizar a nível teórico, de modo a proceder continuação do progresso, visto que a relevância prática "está em relação inversa à dimensão e intensidade do seu tratamento doutrinal", como conclui Bull. As relações jurídicas "em conexas com uma relação jurídico-publica" devem ser vistas como possuidoras de natureza de direito público (teoria da conexão).

   Outra característica fundamental para a delimitação das  "fronteiras movediças", referidas anteriormente, será a origem de ambos os ramos, uma vez que o direito privado nasceu na Roma antiga, enquanto o direito administrativo, tal como concebemos hoje, nasceu da Revolução Francesa. Devido a esta separação de anos entre o nascimento dos dois direitos, o direito privado termina por servir de refúgio para o direito administrativo durante muitos anos. Porém, o direito administrativo prevalece e desenvolve um corpo homogéneo de doutrina, de normas, de conceitos e de princípios, possuidor de uma autonomia própria e de um sistema, em igualdade de condições com o direito civil.

   No entanto, apesar desta autonomia visível, verificamos em várias circunstâncias as importantes influências recíprocas entre os dois ramos, sendo estas produto do desenvolvimento do Estado moderno e contemporâneo. Assim, retomando à questão inicial, é possível assistir à publicização da vida privada (matérias que tradicionalmente eram de interesse privado e assumem hoje uma correlação e um significado público, e, a esse título, não são tratadas pelo direito administrativo) e à privatização da administração privada (a permissão da administração adotar formas de atuação próprias do direito privado).

   Marcelo Rebelo Sousa conclui que as influências entre o direito público e direito privado tendem a acentuar-se e que "o direito público está a privatizar-se ao introduzir esquemas conceptuais do direito privado e este a publicizar-se, por força do algoritmo dos fins do Estado e da sua intervenção na vida económica, social e cultural".

   Por outro lado, Oliveira Ascensão lembra que "divisão não significa contradição", o direito privado não pode ser considerado "o direito dos egoísmos individuais", como o direito público não pode ser considerado "o direito das relações de dominação". Na sua opinião, aliás, o "progresso não está na absorção dum pelo outro, mas na sua coordenação em fórmulas sucessivamente mais perfeitas".

   Também Menezes Cordeiro pronuncia-se sobre o assunto, concordando com a ideia de que hoje em dia não está mais em jogo uma "fronteira estrutural absoluta", mas entende antes que esta distinção "aflora uma importante clivagem histórica, cultura e científica", e, por isso, acaba por concluir que "a sua supressão, além de irrealista, iria empobrecer o conjunto".

   Tendo em conta as posições anteriores, estaremos de facto perante um direito misto, como questiona Madiot? De acordo com a investigação e a argumentação dos diversos autores contemporâneos, encará-los como direito misto seria errado, pois uma contribuiria para o desequilíbrio da harmonia que estes dois ramos procuram alcançar, incessantemente. Como Marcelo Rebelo de Sousa defende, é necessário proceder a uma arrumação destes dois ramos e, por fim, como afirma Maria João Estorninho, "encontrar o equilíbrio entre a necessidade absoluta dessas vinculações e os eventuais riscos de uma publicização excessiva".



Bibliografia:


AMARAL, Diogo Freitas do. Curso De Direito Administrativo. Tomo I. 4º ed. Almedina, 2015.
ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado. Coimbra: Almedina. 1996


Bernardo Martinho 
Nº 28267


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