quinta-feira, 1 de dezembro de 2016



A relação administrativa descentralizada entre Estado e Autarquias Locais

“Gestão da Carris passa para a Câmara de Lisboa em Janeiro
O Governo destacou que «este acordo implementa um novo modelo de gestão descentralizado do serviço público de transporte prestado pela Carris», que «visa a elevação dos atuais patamares de eficiência e sustentabilidade no desenvolvimento do serviço público de transporte de passageiros». «O Estado reconhece, assim, ao município de Lisboa, a titularidade administrativa do serviço público de transporte de passageiros operado pela Carris, no âmbito da relação de concessão em vigor, com as inerentes atribuições e competências de autoridade de transportes», acrescentou.”
In Radio Renascença Online, 21 nov, 2016 - 07:31


Nesta notícia tomamos conhecimento de uma relação em modo descentralizado entre duas pessoas colectivas públicas (neste caso o Governo e o Município de Lisboa) e que o professor Freitas do Amaral define como “o sistema em que a função administrativa esteja confiada não apenas ao Estado, mas também a outras pessoas colectivas territoriais – designadamente, autarquias locais.”[1]  e ao qual o professor Vieira de Andrade acrescenta como sendo o “reconhecimento por lei de atribuições próprias a administrações de comunidades autónomas (...) implicando a instituição de pessoas colectivas públicas e a previsão de competências próprias e exclusivas aos respectivos órgãos eleitos”[2] .
E antes de caracterizar este tipo de relação jurídica importa ver o que se entende por autarquia local e consequentemente por município. Quanto às autarquias locais, a sua existência resulta directamente do disposto no art.235º da CRP: “pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas.” e que encontram o seu regime regulado na Lei nº75/2013, de 12 de Setembro. Embora este regime nada contenha acerca do conceito de município o professor Freitas do Amaral sintetiza-o da seguinte forma: “é a autarquia local que visa a prossecução de interesses próprios da população residente na circunscrição concelhia, mediante órgãos representativos por ela eleitos.”[3] e que como resulta do art.236º/1 da CRP inclui ainda outras espécies ( freguesia e regiões autónomas).
Esta relação descentralizada segundo aponta o professor Freitas do Amaral: “garante as liberdades locais (…) o poder local é um limite ao absolutismo, ou ao abuso do poder central”; “proporciona a participação dos cidadãos na tomada das decisões públicas em matérias que concernem aos seus interesses”; e ainda proporciona “soluções mais vantajosas (…) em termos de custo-eficácia.”[4]. Mas pelo contrário também proporciona algumas desvantagens, referidas pelo mesmo autor, entre as quais: “ alguma descoordenação no exercício da função administrativa” e ainda “abrir a porta ao mau uso dos poderes discricionários da Administração por parte de pessoas nem sempre bem preparadas para os exercer.”[5] A nossa Constituição reconhece o princípio de descentralização da Administração Publica nos arts.6º/1 e 267º/2.
Olhando para o caso especifico relatado na notícia, embora o Governo tenha atribuído a tutela administrativa da Carris ao município de Lisboa, este continua a exercer a mesma relação de tutela sobre o município, ou seja o município passa a exercer tutela sobre a Carris, e o Estado continua a exercer tutela sobre a autarquia local, prevista aliás nos termos gerais no art.242º/1 da CRP. No ponto de vista de João Caupers: “A relação de tutela administrativa entre duas pessoas públicas determina que os actos praticados pelos órgãos da pessoa tutelada se encontrem sujeitos à interferência de um órgão da entidade tutelar, com o propósito de assegurar a legalidade ou o mérito daqueles.”[6] A legalidade aqui referida remete aliás para o princípio enunciado no art.3º/1 do CPA. Quanto à competência que o Governo pode exercer sobre o município de Lisboa, e o município sobre a Carris, é uma atribuição sempre feita através de lei ou regulamento como resulta do disposto no art.36º do CPA. Pode ainda distinguir-se a tutela administrativa relativamente ao fim e ao conteúdo, relevando para este caso a tutela quanto ao fim e que vai desdobrar-se em tutela de legalidade e tutela de mérito.
Quando se fala em tutela de legalidade, o professor Freitas do Amaral refere: “é a que visa controlar a legalidade das decisões da entidade tutelada”,[7] uma vez que para averiguar a legalidade de uma decisão apura-se a sua conformidade ou não com a lei.  E é esta a tutela que o Governo exerce sobre o município de Lisboa ou qualquer outra autarquia local, e como previsto no já referido art.242º/1 da CRP “é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei”, pelo que não se presume. Neste caso específico (Governo – municípios) encontra-se prevista no DLnº100/84 de 29 de Março.
Já a tutela de mérito “é aquela que visa controlar o mérito das decisões administrativas da entidade tutelada” sendo por isso independente do critério da legalidade, importa verificar apenas se a decisão é ou não sustentável.
Em suma, neste e noutros fenómenos de poder descentralizado, pretende-se que os serviços prestados pelas entidades públicas envolvidas sejam mais eficientes, ora as autarquias locais saberão melhor quais as necessidades dos seus respectivos cidadãos do que o Estado enquanto órgão único. A relação que o Estado mantém com as entidades públicas sob a forma de tutela permite-lhe atribuir à entidade tutelada alguma autonomia (podendo esta sempre que assim o pretender ou achar conveniente consultar o Governo), mas ao mesmo tempo torna-a dependente do Governo nas questões que a lei assim o determinar.  

Bibliografia:
·        Andrade, José Carlos Vieira de. Lições de Direito Administrativo. (2ª edição)
·        Amaral, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, Vol.I. Coimbra: Almedina. (2015)
·        Caupers, João. Introdução ao Direito Administrativo. Lisboa: Âncora. (2003)
·         Rádio Renascença Online. A relação administrativa descentralizada entre Estado e Autarquias Locais. (2016) Disponível em: http://rr.sapo.pt/noticia/69009/gestao_da_carris_passa_para_a_camara_de_lisboa_em_janeiro (Consultado em 28-11-2016)


[1] Amaral, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, Vol.I, p.723
[2] Andrade, José Carlos Vieira de. Lições de Direito Administrativo, p.84
[3] Amaral, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, Vol.I, p.450
[4] Ibidem pp.725-726
[5] Ibidem pp.726
[6]  Caupers, João. Introdução ao Direito Administrativo, p.127
[7] Amaral, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, Vol.I,p.731

Filipa Esteves Dias
Nº28542

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