A relação administrativa
descentralizada entre Estado e Autarquias Locais
“Gestão
da Carris passa para a Câmara de Lisboa em Janeiro
O
Governo destacou que «este acordo implementa um novo modelo de gestão
descentralizado do serviço público de transporte prestado pela Carris», que «visa
a elevação dos atuais patamares de eficiência e sustentabilidade no
desenvolvimento do serviço público de transporte de passageiros». «O Estado
reconhece, assim, ao município de Lisboa, a titularidade administrativa do
serviço público de transporte de passageiros operado pela Carris, no âmbito da
relação de concessão em vigor, com as inerentes atribuições e competências de
autoridade de transportes», acrescentou.”
In Radio
Renascença Online, 21 nov, 2016 - 07:31
Nesta notícia tomamos conhecimento de uma relação em modo
descentralizado entre duas pessoas colectivas públicas (neste caso o Governo e
o Município de Lisboa) e que o professor Freitas do Amaral define como “o
sistema em que a função administrativa esteja confiada não apenas ao Estado,
mas também a outras pessoas colectivas territoriais – designadamente,
autarquias locais.”[1] e ao qual o professor Vieira de Andrade acrescenta
como sendo o “reconhecimento por lei de atribuições próprias a administrações
de comunidades autónomas (...) implicando a instituição de pessoas colectivas
públicas e a previsão de competências próprias e exclusivas aos respectivos
órgãos eleitos”[2]
.
E antes
de caracterizar este tipo de relação jurídica importa ver o que se entende por
autarquia local e consequentemente por município. Quanto às autarquias locais,
a sua existência resulta directamente do disposto no art.235º da CRP: “pessoas
colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a
prossecução de interesses próprios das populações respectivas.” e que encontram
o seu regime regulado na Lei nº75/2013, de 12 de Setembro. Embora este regime
nada contenha acerca do conceito de município o professor Freitas do Amaral
sintetiza-o da seguinte forma: “é a autarquia local que visa a prossecução de
interesses próprios da população residente na circunscrição concelhia, mediante
órgãos representativos por ela eleitos.”[3] e que
como resulta do art.236º/1 da CRP inclui ainda outras espécies ( freguesia e
regiões autónomas).
Esta
relação descentralizada segundo aponta o professor Freitas do Amaral: “garante
as liberdades locais (…) o poder local é um limite ao absolutismo, ou ao abuso
do poder central”; “proporciona a participação dos cidadãos na tomada das
decisões públicas em matérias que concernem aos seus interesses”; e ainda
proporciona “soluções mais vantajosas (…) em termos de custo-eficácia.”[4]. Mas
pelo contrário também proporciona algumas desvantagens, referidas pelo mesmo
autor, entre as quais: “ alguma descoordenação no exercício da função
administrativa” e ainda “abrir a porta ao mau uso dos poderes discricionários
da Administração por parte de pessoas nem sempre bem preparadas para os exercer.”[5] A
nossa Constituição reconhece o princípio de descentralização da Administração
Publica nos arts.6º/1 e 267º/2.
Olhando
para o caso especifico relatado na notícia, embora o Governo tenha atribuído a
tutela administrativa da Carris ao município de Lisboa, este continua a exercer
a mesma relação de tutela sobre o município, ou seja o município passa a
exercer tutela sobre a Carris, e o Estado continua a exercer tutela sobre a
autarquia local, prevista aliás nos termos gerais no art.242º/1 da CRP. No ponto
de vista de João Caupers: “A relação de tutela administrativa entre duas
pessoas públicas determina que os actos praticados pelos órgãos da pessoa
tutelada se encontrem sujeitos à interferência de um órgão da entidade tutelar,
com o propósito de assegurar a legalidade ou o mérito daqueles.”[6] A
legalidade aqui referida remete aliás para o princípio enunciado no art.3º/1 do
CPA. Quanto à competência que o Governo pode exercer sobre o município de
Lisboa, e o município sobre a Carris, é uma atribuição sempre feita através de
lei ou regulamento como resulta do disposto no art.36º do CPA. Pode ainda
distinguir-se a tutela administrativa relativamente ao fim e ao conteúdo,
relevando para este caso a tutela quanto ao fim e que vai desdobrar-se em
tutela de legalidade e tutela de mérito.
Quando
se fala em tutela de legalidade, o professor Freitas do Amaral refere: “é a que
visa controlar a legalidade das decisões da entidade tutelada”,[7] uma
vez que para averiguar a legalidade de uma decisão apura-se a sua conformidade
ou não com a lei. E é esta a tutela que
o Governo exerce sobre o município de Lisboa ou qualquer outra autarquia local,
e como previsto no já referido art.242º/1 da CRP “é exercida nos casos e
segundo as formas previstas na lei”, pelo que não se presume. Neste caso
específico (Governo – municípios) encontra-se prevista no DLnº100/84 de 29 de
Março.
Já a
tutela de mérito “é aquela que visa controlar o mérito das decisões
administrativas da entidade tutelada” sendo por isso independente do critério
da legalidade, importa verificar apenas se a decisão é ou não sustentável.
Em suma,
neste e noutros fenómenos de poder descentralizado, pretende-se que os serviços
prestados pelas entidades públicas envolvidas sejam mais eficientes, ora as
autarquias locais saberão melhor quais as necessidades dos seus respectivos cidadãos
do que o Estado enquanto órgão único. A relação que o Estado mantém com as
entidades públicas sob a forma de tutela permite-lhe atribuir à entidade tutelada
alguma autonomia (podendo esta sempre que assim o pretender ou achar
conveniente consultar o Governo), mas ao mesmo tempo torna-a dependente do
Governo nas questões que a lei assim o determinar.
Bibliografia:
·
Andrade,
José Carlos Vieira de. Lições de
Direito Administrativo. (2ª edição)
·
Amaral,
Diogo Freitas do. Curso de Direito
Administrativo, Vol.I. Coimbra: Almedina. (2015)
·
Caupers,
João. Introdução ao Direito
Administrativo. Lisboa: Âncora. (2003)
·
Rádio
Renascença Online. A
relação administrativa descentralizada entre Estado e Autarquias Locais.
(2016) Disponível em: http://rr.sapo.pt/noticia/69009/gestao_da_carris_passa_para_a_camara_de_lisboa_em_janeiro
(Consultado em 28-11-2016)
[1] Amaral, Diogo Freitas do. Curso de Direito
Administrativo, Vol.I, p.723
[2] Andrade, José Carlos Vieira de. Lições
de Direito Administrativo, p.84
[3] Amaral, Diogo Freitas do. Curso de Direito
Administrativo, Vol.I, p.450
[4] Ibidem
pp.725-726
[5] Ibidem
pp.726
[7] Amaral, Diogo Freitas do. Curso de
Direito Administrativo, Vol.I,p.731
Filipa Esteves Dias
Nº28542
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